Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

A persistente desigualdade racial brasileira

Dados mostram o quanto temos falhado na reparação dos legados da escravidão

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Michael França

Foi pesquisador visitante nas Universidade Columbia e Stanford (EUA), é doutor em teoria econômica pela USP e coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper

Alysson Portella

É coordenador de pesquisas do Núcleo de Estudos Raciais do Insper e doutor em economia dos negócios pela mesma instituição, foi aluno visitante nas Universidade Columbia (EUA) e das Nações Unidas (Finlândia)

Apesar dos esforços substanciais nos últimos anos, as diferenças raciais no Brasil permanecem significativas. No ano passado, publicamos um livro (Números da Discriminação Racial) documentando a evolução da desigualdade racial no Brasil, abordando renda, educação, saúde, violência e representação política.

No geral, as coisas não estão boas. Embora tenha havido algum progresso no enfrentamento das disparidades raciais nas últimas décadas, ele atingiu apenas uma pequena parcela da população negra brasileira. Novas políticas públicas são necessárias para promover um Brasil mais igualitário.

O Brasil foi por muito tempo considerado uma "democracia racial", e levou gerações de estudiosos e décadas de movimento negro organizado para desmascarar esse mito. Também houve um crescimento na consciência racial no Brasil, com mais pessoas se identificando como negras.

Hoje, a maioria dos brasileiros reconhece que o racismo impede que muitos alcancem seu pleno potencial, mas até que ponto esse reconhecimento se traduziu em melhor bem-estar para os brasileiros negros?

Michael França, à esquerda, é um homem negro de cabelos crespos escuros e barba. Na imagem, ele usa óculos de grau e veste traje preto. Alysson é um homem branco de cabelos grisalhos e lisos que, na imagem, aparecem presos. Ele também tem barba e olhos escuros. Na imagem, ele usa óculos de grau, veste uma blusa de botão escura e está em um palanque do Insper
Michael França (à esq.) foi pesquisador visitante na Universidade Columbia e Universidade Stanford (EUA), é colunista da Folha, doutor em teoria econômica pela USP e coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper (Neri); Alysson Portella é coordenador de pesquisas do Neri e doutor em economia dos negócios pelo Insper, foi aluno visitante na Universidade Columbia e na Universidade das Nações Unidas (Finlândia) - Divulgação

As tendências de longo prazo na desigualdade racial de renda mostram um declínio nos últimos quarenta anos, mas a diferença aumentou recentemente. Nas décadas de 1980 e 1990, os trabalhadores negros recebiam de 44% a 48% menos do que os trabalhadores brancos. No final dos anos 1990, a diferença racial de renda começou a diminuir e foi reduzida para 32% em 2011. Mas desde então, a diferença salarial aumentou ligeiramente.

Essa redução na desigualdade de renda foi pequena e restrita a um curto período em torno dos anos 2000. Provavelmente foi o resultado de outros fatores que contribuíram para uma diminuição geral da desigualdade —como salários mínimos mais altos e uma redução nas diferenças salariais entre trabalhadores com níveis alto e baixo de escolaridade - ao invés de avanços na própria igualdade racial.

Imagem mostra gráfico que indica redução da diferença salarial entre negros e brancos, de 1980 a 2025
"Diferença salarial entre brasileiros negros e brancos", em português - Divulgação

As diferenças salariais continuaram generalizadas, mesmo quando se comparam trabalhadores com empregos, níveis de escolaridade e experiência semelhantes. Considerando esses fatores, os trabalhadores negros recebiam cerca de 13% menos do que os trabalhadores brancos na década de 1980. Essa lacuna permaneceu estável até 2020.

Desse ponto de vista, não houve nenhum progresso. Apesar de superar uma ditadura, controlar a hiperinflação, implementar transferências condicionadas de renda e introduzir ações afirmativas baseadas em raça nas universidades, o Brasil não conseguiu reduzir a discriminação no mercado de trabalho nos últimos quarenta anos.

Ainda assim, há uma mensagem um tanto positiva. A maior parte —mas não toda— diferença racial se deve a fatores que não a discriminação direta no mercado de trabalho. Isso inclui diferentes tipos de emprego, variações entre diferentes regiões do Brasil e, mais importante, diferentes níveis de escolaridade entre brasileiros negros e brancos. Isso sugere um caminho promissor para reduzir a desigualdade no trabalho: promover a igualdade na educação.

FOCANDO NA EDUCAÇÃO

O Congresso recentemente renovou e atualizou a lei que garante ações afirmativas em universidades públicas. A legislação, promulgada pela primeira vez há 12 anos, reserva 50% das vagas nessas universidades para estudantes de famílias pobres, e parte dessas vagas é exclusiva para estudantes negros e indígenas.

A renovação da lei em outubro de 2023 garante que o país continue no caminho certo, mas o acesso à faculdade continua sendo o principal desafio. O Brasil conseguiu garantir o acesso universal ao ensino fundamental para crianças negras e brancas durante os anos 2000. Embora muitos adolescentes ainda não estejam matriculados no ensino médio, as diferenças raciais estão diminuindo rapidamente.

Na década de 1980, o ensino superior era prerrogativa de brasileiros privilegiados, a maioria deles brancos. A matrícula na faculdade se expandiu rapidamente no Brasil desde o final dos anos 1990, com efeitos diferentes na igualdade racial.

Por um lado, se olharmos a diferença nas taxas de matrícula, os brasileiros brancos se saíram melhor: no início dos anos 1980, suas taxas de matrícula estavam 6 pontos percentuais à frente dos brasileiros negros. Hoje, a diferença é de 14 pontos percentuais. Por outro lado, a matrícula de brasileiros negros melhorou mais rapidamente, passando de 2% para 16% (oito vezes), enquanto para os brasileiros brancos essa taxa passou de 8% para 32% (quatro vezes). Se as tendências continuarem assim, a diferença nas taxas de matrícula por raça pode diminuir significativamente nas próximas décadas.

No entanto, dois fatores indicam que essa tendência pode não durar. Primeiro, as políticas de ação afirmativa têm alcance limitado. Elas aplicam-se apenas às universidades públicas, que estão entre as melhores do Brasil, mas representam menos de um quarto da matrícula total atualmente.

Segundo, crianças negras estão ficando para trás das crianças brancas em todas as medidas de aprendizado disponíveis. Em todas as séries, o desempenho geral das crianças negras é pior do que o de crianças brancas de origem socioeconômica semelhante, e até mesmo dentro da mesma escola. Sem resolver esse problema, não há muita esperança de que as disparidades raciais no ingresso na universidade e na renda convirjam no futuro.

TOMANDO MEDIDAS

Combater a desigualdade racial exigirá ações em várias frentes. Em primeiro lugar, pesquisas mostram que as defasagens de aprendizagem começam antes da escola e até mesmo antes do nascimento das crianças. Com níveis mais baixos de apoio para gestantes negras e ambientes domésticos e pré-escolares menos estimulantes, as crianças negras entram na escola em desvantagem. Portanto, políticas públicas devem melhorar o acesso das famílias negras à saúde e ao cuidado infantil.

Na escola, a discriminação racial dificulta ainda mais a capacidade de desenvolvimento das crianças negras. Expectativas baixas por parte dos professores, bullying e a forma como os pais respondem aos estereótipos raciais negativos contribuem para esse cenário. Para lidar com esses problemas, as escolas precisam agir em duas frentes. Primeiramente, devem implementar programas neutros em relação à raça, mas que beneficiem principalmente alunos com baixo desempenho, como aulas de recuperação. Em segundo lugar, uma educação antirracista que fornece aos alunos ferramentas para enfrentar o racismo deve ser parte integrante do currículo escolar.

A ampliação das ações afirmativas em duas direções também pode ajudar a superar problemas distintos. Primeiramente, o governo pode criar incentivos para que faculdades particulares reservem vagas para estudantes negros, complementando as políticas atuais que abrangem apenas universidades públicas. Os benefícios poderiam incluir acesso preferencial a subsídios, empréstimos estudantis e incentivos fiscais para instituições que cumpram essas regras.

Em segundo lugar, o governo pode expandir a ação afirmativa para o emprego em empresas privadas que participam de licitações públicas. Esse tipo de regulamentação foi implementada com sucesso nos Estados Unidos no passado e pode ser uma ferramenta importante no combate à discriminação no mercado de trabalho.

Reconhecer o problema é o primeiro passo para resolvê-lo. O Brasil já desmascarou o mito da democracia racial, mas ainda há um longo caminho pela frente no que diz respeito à formulação de políticas públicas eficientes para enfrentar a desigualdade racial.

Originalmente publicado na Americas Quarterly, em inglês, em 13 de fevereiro de 2024.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida foi "Zumbi", de Jorge Bem Jor.

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