Quadro-negro

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Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Novo filme 'Batman' é pastel de vento infantilizado e infantilizante

Precisamos mesmo de mais filmes deste personagem?

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pôster de filme
Robert Pattinson em cartaz do filme 'Batman', dirigido por Matt Reeves - Divulgação

Este texto não contém spoilers.

Ao final do filme "Vanilla Sky", de Cameron Crowe, refilmagem pop de "Abre Los Ojos", de Alejandro Amenábar, é revelado que o personagem de Tom Cruise, trintão/quarentão milionário herdeiro mimado, não estava vivendo uma vida real. Na verdade seu corpo estava congelado em uma traquitana de criogenia enquanto ele estava sonhando uma vida encomendada por ele mesmo. Tudo em sua vida era uma invenção para agradar apenas a uma pessoa, ele mesmo. O nome desse estado de autoengano, no filme, era sonho lúcido.

Em "O Show de Truman", de Peter Weir, o personagem de Jim Carrey, trintão/quarentão, descobre que está sendo criado e mimado numa bolha onde até a chuva é falsa, cenográfica.

Posto que a indústria americana de cinema visa apenas e tão somente o dinheiro do seu bolso, ela estruturou-se em dar para o público, geralmente masculino, infantilizado, de trintões e quarentões, o que eles querem. Para agradar os homens meninos, nunca faltaram seus brinquedos preferidos - armas e mulheres sensuais.

Godard dizia que para fazer um filme tudo o que se precisava era uma mulher e uma arma. Fellini e Antonioni exploraram isso na Europa. Tanto o cinema comercial quanto o de arte sempre foram algoritmos feitos para agradar homens meninos.

"Batman", de Matt Reeves, não escondeu que seria mais do mesmo. Nós, homens meninos, é que não nos importamos de sermos enganados, como nossos avós quando recebiam juras de amor de profissionais de casas de tolerância.

Tudo na nova aventura do homem-morcego é uma versão adocicada, infantilizada, para quem não tem estômago, de coisas que já foram feitas no cinema. O que move o vilão e a trama é o mesmo do que move o Joe Doe de "Seven" e o "Coringa" de Joaquim Phoenix. Adiciona-se também "Zodíaco", de David Fincher. O tempero sem sal é a versão adolescente e com censura do peso monstruoso dos fatos apimentadíssimos que se sucedem em "Chinatown", de Polanski. Tudo o mais é uma colagem do Batman da TV, do Tim Burton, e o de Christopher Nolan. 'Batman' faz uma colagem quase sempre confusa e nunca dramática de cenas destes filmes, como na recriação da cena do metrô, do filme "Coringa", ou mais uma fez a Mulher Gato caindo por cima do Batman com o plano fechado na exata posição que Tim Burton elaborou em "Batman Returns".

O roteiro de The Batman parece que foi escrito a 28 mãos, ou por um programa de computador, que procurou na Wikipedia o significado do termo film noir. O filme é escuro como Duna, fotografado pelo mesmo fotógrafo, Greg Fraser. Como Duna, "Batman" parece-se com uma série de streaming. Há esse novo gênero de cinema, o feito para a tela pequena (por mais que os diretores digam o contrário) e temos que lidar com ele. A a série do Pinguim de Matt Reeves já está confirmada para a HBO MAX.

O filme esconde a constrangedora falta de camadas e conteúdos em uma escuridão que funciona como uma camada de torta de bolo de chocolate onde não há nada dentro. É má fotografia com a desculpa de conceito, parecida com o episódio da série de "Game of Thrones" chamado "A longa noite". A chuva que cai sobre Gotham City deste filme é tão falsa (a péssima montagem só piora isso), que parecemos estar de volta no "Show de Truman".

Exceto o elenco, nada é autêntico em "Batman".

O elenco é ótimo. O que seria destes filmes feitos por algoritmo se não fossem os atores? Viva eles. Pattinson está bem. Mas é melhor ator que o que entrega no filme. Em 2012 fez o melhor Bruce Wayne da história, no filme "Cosmópolis", de David Cronemberg. Lá, esteve sublime.

O film noir "Seven" tem seu clímax no meio do deserto em uma sequência estourada de luz e até hoje desejamos que Morgan Freeman nunca tivesse aberto aquela caixa. O horror em "Chinatown" é sépia e não precisa usar sombras. Heath Ledger, como Coringa, em plena luz do dia, vestido de enfermeira saindo de um hospital nos apavora mais que qualquer coisa neste The Batman.

Dizem que o filme está bem avaliado por meninos trintões/quarentões em seu sonho lúcido.

Emoções apressadas assim quase fez todo o maravilhoso universo de heróis da DC (agora aprumado por um talento genuíno como James Gunn) se destruído por Zack Snyder, que é diretor de maus videogames que se pretendiam filmes, além de vetores de uma comunidade tóxica de fãs. Esse "Batman", filme medroso, sem riscos, veio para deixar os investidores sossegados. Snyder tem jeitão de amador. Matt Reeves parece um funcionário que faz as vontades do patrão com prazer.

Até o sempre excelente Michael Giacchino, autor da trilha, deixa a bravura de lado e repete, semitonadas, as três primeiras notas da Marcha Imperial de John Williams, martelando-as sem parar, ao estilo e inspirado certamente por reunião de investidores, pelo o que fez Hans Zimmer nos filmes de Nolan. Se os fãs no twitter fizerem uma hashtag, Darth Vader aparece na sequência.

Kurt Cobain, vocês sabem, já disse aqui que ele contou-me pessoalmente, que temia ter se tornado o que mais temia. Uma peça imprescindível para o sistema. O fime de Matt Reeves obedece a dinâmica grunge, inventada pelos Pixies, do quiet-lout-quiet-loud. Momentos de muito silêncio com momentos de muito barulho. Teria funcionado se houvesse ali a fúria genuína dos roqueiros de garagem. Kurt Cobain não merecia ter terminado sendo jingle de filme de super-herói. Mas o mundo é a vergonha que é.

Todos lembramos da vergonhosa comoção com o último filme, e com último ato de "O Cavaleiro das Trevas Ressurge", o último dos filmes de Nolan com o herói. Na falta de saber o que fazer no final, apelou-se para um pega para capar genérico. Aumenta-se o som, confia-se em alguma frase que dê conceito moral à ideia, no caso de "Batman", de vingança, afinal estamos nos puritanos Estados Unidos da América, e torce pra dar tudo certo.

E vai dar tudo certo.

Eu fico aqui me perguntando como chegamos, plateia e crítica, nesse ponto. Como nos contentamos com tão pouco?

E se tudo é tanta repetição, se todos os aspectos deste personagem tão unidimensional já foram explorados em audiovisual, para que fazer mais filmes sobre o herói?

As respostas são as mesmas para as duas questões.

Dinheiro e conforto. Filmes como "Batman" alimentam a abençoada ignorância que escolhemos todos os dias abraçar.

Uma das pessoas mais inteligentes que conheço, mulher extraordinária, uma vez disse que o Batman preferido dela é o "Batman Lego".

Foi a única que entendeu tudo o que vivemos hoje em todos os aspectos.

A gente segue aqui, emocionado com socos à contraluz e cenas que se repetem e que emulam uma revoltinha patrocinada, uma subversão pensada por um enorme departamento de marketing.

Num mundo que quer ver um-filme-do-Batman-que-mostre-o-quanto-ele-é-sério, os bat-mamilos do filme de Joel Schumacher, o camp do Batman da TV, e até mesmo a ambição Imax de Nolan são as verdadeiras subversões.

Porque Batman badass, esquece. Ou pede a volta do programa Gente Inocente e se inscreve para participar.

Imagine por exemplo o quanto iria afinar o morcego numa trocação franca de palavras ou 'por qualquer meio necessário' entre ele, por exemplo, Malcom X?

Sim, somos, nós e o Batman, unidimensionais, repetitivos, covardes, influenciáveis e confortáveis.

Homens meninos.

Órfãos riquinhos.

Algoritmos.

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