Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

Show de pré-estreia da turnê de despedida de Milton Nascimento ajudou a entender a beleza da finitude

O artista nos mostrou no Rio que coisas belas, para serem belas, têm que ter fim

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Milton Nascimento no palco
No sábado dia 11/06/22, Milton Nascimento fez pré-estreia de sua última turnê ao vivo. - Dodô Azevedo

Coisas belas, para serem belas, têm que ter fim.

No último sábado (11), na sala de concerto da Cidade das Artes, Rio de Janeiro, algo entre mil privilegiados testemunharam o show de pré-estreia da turnê de despedida de Milton Nascimento dos palcos.

Todos os outros muitos e muitos milhares de ingressos para a despedida de Milton, com shows também na Europa, Estados Unidos e com encerramento apoteótico no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, foram esgotados em poucas horas. Para os que ainda estão disponíveis, fora do Brasil, a disputa está na base do tapa.

Fui um dos privilegiados. Quando o ingresso chegou nas mãos, primeiro veio euforia. Em seguida, o enfrentamento com um fato consumado. Nunca mais voltaria a ver o maior de todos ao vivo.
O maior de todos é uma deidade que reúne dois seres vivos. Cada um vive em um hemisfério do planeta. Fala-se, aqui, de Stevie Wonder e Milton Nascimento.

Stevie Wonder é reservadíssimo no registro de seus shows. Seu DVD "Live at last", feito em 2009, é único no mercado e provavelmente seu último show gravado para consumo em casa.

O show de Milton chama-se "Ultima Sessão de Música". Mas poderia se chamar "Ultima sessão". Porque embora exista similaridades nos dois shows (banda virtuosa, com arranjos volumosos, que até canta algumas canções no lugar do band leader, repertório que começa morno e em seguida enfileira hits definitivos, plateia em estado de êxtase, muitas lágrimas), o show de Milton possui uma diferença.

Trata-se tanto de um show quanto de uma cerimônia de educação. De todas as dificuldades que nosso espírito tem, a maior, especialmente no ocidente, é a não aceitação da finitude das coisas. E não aceitar a finitude das coisas é ao mesmo tempo exercitar arrogância e apequenar-se diante do papel fundamental que temos no grande todo da vida.

Prestes a completar 80 anos, físico já disperso pelo tempo, Milton cadencia e canta em timbres baixos suas canções. Por isso, elas soam menos como canções e mais como uma sucessão de frases filosóficas, destas capazes de salvar nossas vidas.

Versos como o de "Cio da Terra" nos aconselham que, para ser feliz de verdade, é preciso passar antes por processos. Para se fartar de pão e se lambuzar de mel, precisamos decepar a cana e debulhar o trigo. Em "Tudo o que Você Podia Ser", um mapa que nos dá coragem para investirmos em nossas potencialidades humanas. Tudo o que se pode ser sem medo.

Em "Para Lennon e MacCartney", uma das canções que tornam Milton o único artista da MPB que entendeu que o Brasil fica na America Latina, um carpe diem ontológico: Todo dia é dia de viver, canta ele.
Parece bobagem, mas você já se perguntou se viveu hoje?

Você já se perguntou se as pessoas que estão passando frio e fome nas ruas do país estão tendo o direito de viver o dia? Ou apenas sobrevivendo a eles?

Como não ver Milton ali, corpo em despedida, e não cair no choro e entender finalmente o verdadeiro significado do verso "com a roupa encharcada e a alma repleta de chão, todo artista tem de ir aonde o povo está"?

E, em espiral, as epifanias vêm do palco direto ao coração (americano, ao lado esquerdo do peito etc):
Agora, finalmente, a potência total da frase "Eu, caçador de mim".

Agora, finalmente, a potência total da frase "Quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida".

Agora, finalmente, a potência total da frase "Ponta de areia, ponto final".

Agora, finalmente, a potência total das frases "Deixar o seu amor crescer e ser muito tranquilo. Brilhar, acontecer, brilhar, faca amolada."

Agora, finalmente, a potência total das frases "Qualquer maneira de amor vale a pena. Qualquer maneira de amor vale amar"

Agora, finalmente, a potência total das frases "Eu já estou com o pé nessa estrada. Qualquer dia a gente se vê. Sei que nada será como antes, amanhã."

Agora, finalmente, a potência total das frases "E assim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem. O trem que chega é o mesmo trem da partida. A hora do encontro é também despedida".

Agora, finalmente, a potência total das frases "Solto a voz nas estradas. Já não quero parar".

Agora. Nas estradas.

A vida é sobre o que fazemos na estrada. É sobre o caminho.

E Milton, o maior, está pronto.

Travessia.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.