Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

'O bolsonarismo não é maior que a vida'

Escritora negra nos lembra o que pessoas pretas sempre souberam

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Menina se diverte no parquinho instalado no Memorial da América Latina, na Barra Funda na zona oeste de São Paulo, por ocasião do Dia das Crianças. (Foto: Marlene Bergamo/Folhapress) - Folhapress

Por Tatiana Nascimento - Escritora e poeta - Convidada pelo blog a escrever este texto exclusivo

Não é notável, a poucos dias do segundo turno das eleições, como essa onda de violência motivada por divergência política que cresce, ocupa cada vez mais espaço na mídia (inclusive a hegemônica) e é assinada por seguidores da seita bolsonarista, tem democratizado um medo que – de forma assim ordenada, sistematizada, historicamente perceptível –, por muitos séculos nesse Brasil colonial, tinha como alvo prioritário, para não dizer exclusivo, pessoas pretas, indígenas, dissidentes sexuais y/ou de gênero (LGBTQIAP+), os povos do campo em luta por terra, os povos de terreiro?

Não é notável como o mesmo Brasil em que Sergio Serrano, um jovem negro, pai de família, é assassinado pela PM no Rio de Janeiro por ter seu guarda-chuva confundido com fuzil, é o Brasil que assiste as notícias do domingo 23 de outubro de 2022: a uma semana do segundo turno das eleições pra presidente, um político branco recebe a PF com tiros de fuzil, três granadas? Não era guarda-chuva, era fuzil. Mas Rodrigo Serrano, assassinado em 2018, não é Roberto Jefferson.

É o mesmo Brasil, mas não é um Brasil só.

Sabe o que eu fico imaginando? Que Rodrigo, como meu pai, o pai de minha filha e outros tantos homens negros desse mesmo Brasil, deve ter ouvido muitos conselhos de sua mãe sobre levar os documentos ao sair de casa; não andar despenteado; vestir a camiseta, calçar o chinelo pra ir à padaria da esquina comprar pão. Sim, e levar os documentos, menino, não me faça repetir! Mas pra comprar pão minha mãe? Sim! Muleque custoso!

É um daqueles segredos guardados em plena luz do dia: conselhos assim fazem parte das tecnologias de sobrevivência que grupos historicamente marginalizados, perseguidos, desumanizados temos que criar pra não apenas conseguirmos seguir respirando, I can't breath, mas pra lutar pelo direito humano básico de sermos reconhecides como pessoas.

Quando ouço os senhores brancos, como Roberto Jefferson, de classe média/média alta (agora não são mais como Roberto Jefferson não, que é rico mesmo né?), senhores meus vizinhos aqui desse prédio fincado às custas de muito cerrado desmatado no coração de um dos bairros mais bolsonarista do DF, quando os ouço reclamando que direitos humanos só serve (sic) para bandido, eu me percebo lembrando do direito humano de poder andar com um guarda-chuva sem ser alvejado pela polícia. Me pego divagando sobre o direito humano de ser considerado sempre pessoa. Sempre. Como deve ser bom, né, para a autoestima, para uma vida sem medo constante de ser desaparecido da face do planeta.

Fico revisando algumas coisas que aprendi nesses 41 anos de vida até aqui. Me pergunto "como vou explicar isso para minha filha, daqui a uns 03, 09, 27 anos, como vou dizer para ela 'olha, minha filha preta, de cabelo crespo, vamos visitar o vovô e a vovó? mas vou trocar sua blusa porque caiu aqui um respingo de feijão, e não quero que de novo o porteiro novo, que mesmo sendo preto não sabe que somos, eu e você, pessoas pretas como ele, uma filha e uma neta de moradores-proprietários desse prédio de classe média/média alta, vamo aproveitar também e lavar o cabelo pra deixar os cachos parecendo mais organizados? Para eles não mandarem a gente pro elevador de serviço de novo, tá bom, minha filha?, eu sei, você gosta tanto dessa blusa né meu amor, o black solto…'"

Será que eu vou dar conta de explicar à minha filha o direito humano (tecnocrata, típico de arquiteturas verticais) de escolher por qual elevador subir? Proteger-nos desses senhores?, aqueles tão parecidos com Roberto Jefferson, que dão medo pelo jeito que olham pra gente quando ela aos seus 1 ano e recém-completos 5 meses começa a cantar lulalá no elevador, aquele mesmo da distopia do parágrafo anterior em que hão de nos subalternizar em alguma visita futura à casa de vovó, I know, I can't breath, I wanna keep breathing, we better keep moving. É só ficção?

Nesse bairro aqui, como disse a vocês (que aliás não chama "bairro" porque na Brasilia, Distrito Federal, quem nasceu nas satélites chama as regiões administrativas de satélites mesmo, "cidades satélites", orbitando constelares o centro, o plano do piloto, o avião mais famoso que o quadrado etc.), bairro da classe concursada branca que compra cachorro de raça e envenena gato de rua, onde tanta gente vota no bolsonaro e não tem vergonha nem pudor nem medo nem receio nem nenhum constrangimento de portar bandeiras do Brasil, nesse bairro aqui eu, que não sou bolsonarista e não ensinei minha filha a cantar lulalá mas acho uma graça, sinto medo e receio (embora nunca constrangimento, pudor nem vergonha), só medo e receio mesmo, e às vezes pânico, já que temos que ficar alguns minutos confinadas em elevadores sociais ou de serviço tanto faz com senhores brancos como o Roberto Jefferson, aquele, que fuzila e joga granada na PF, enquanto eu lá no elevador investigando meus medos será se vão agredir verbalmente minha bebê ao ouví-la cantar lulalá no elevador nos agredir fisicamente, fisicamente não, não é possível, tem CFTV, será que fica gravado, quando será advogado… aff, vai de escada vai.

Vai de escada mesmo, não anda com guarda-chuva, leva os documentos pra padaria, não canta lulalá no bairro, sem bandeira na janela, não usa vermelho hoje mesmo que seja de Oyá não petista, finge que não ouviu eles assediando a gente, não precisa dizer que é minha namorada, leva o RG pra padaria, guarda o guarda-chuva, sei nem quanto custa uma granada, ignora o que as mães todas brancas do parquinho acham que é piada sobre o cabelo crespo da filha preta, leva o RG. Para a padaria sim, muleque custoso!

São tecnologias simples de sobrevivência cotidiana que eu, minha filha, meu pai, o pai dela, várias outras pessoas negras temos aprendido ao longo desses cinco longos séculos coloniais pra exercer o direito humano de, por exemplo, ir e conseguir voltar. E vejam estou falando só daqui do meu bairro classe média, viu? Pra quem acha que racismo resolve com o fim do capitalismo ou ao menos uma cesta básica.

Enquanto isso a violência eleitoral explodindo na mídia feito granadas do Roberto Jefferson, essa que dá medo de sair na rua de vermelho, de dizer lulalá, aprende a mirar corpos que antes não sabiam nem dela existir. O fascismo que se alastra e banaliza, praticado até por quem não sabe definir "fascismo" como conceito, esse que empresta métodos ao bolsonarismo a ponto de fazer ambas as palavras parecerem sinônimo, ampliou a ameaça a vidas tradicionalmente consideradas "vivíveis".

Mas nós, os outros, os preto, as p%#*, as trava, os "sem-terra é tudo vagabundo", os que eles chamam de "os índio", os macumbeiro, nós temos um relicário no peito guardando tecnologias de nos manter vives. Temos espalhado isso também. Escuta, repara, espia, aprende – nem sempre é sobre passar batido, sabe; que o medo ensina limites, mas ensina também umas coragens (que não cabem no jornal). Em resumo: o bolsonarismo (ou o fascismo, como queiram) não é maior que a vida.

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