São Paulo Antiga

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Se esta será a recuperação do centro que teremos, melhor parar

O centro não precisar ser instagramável, mas sim frequentável

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Douglas Nascimento
São Paulo (SP)

No último dia 13 de dezembro publiquei nesta coluna a desagradável sensação de um peso e duas medidas na recuperação do centro de São Paulo por parte da prefeitura paulistana. Se por um lado a inaugurava-se um quadrilátero "para inglês ver" na esquina mais famosa da cidade, do outro a 250 metros de distância a realidade era completamente outra.

No afã de se tornar mais conhecido o Prefeito Ricardo Nunes (MDB) está divulgando aos quatro ventos a recuperação do centro de São Paulo, que começou pelo cruzamento das avenidas Ipiranga e São João. Porém, começou muito mal.

Vista aérea do cruzamento das avenidas Ipiranga e São João no dia de inauguração das obras requalificação do local. - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Sem consulta aos órgãos culturais da cidade, como a Secretaria de Cultura (SMC) e o Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) as obras parecem pouco preocupadas em valorizar e melhorar aquela região do centro histórico. Não ocorreu um estudo aprofundado sobre como adequar aquele cruzamento famoso de acordo com os preceitos do tombamento da região central e nem do mobiliário urbano municipal.

O resultado é um show de horrores, capitaneado pela SP Urbanismo que deveria consultar e executar aquilo que o DPH e a SMC possivelmente tem de ideias e não sair pela cidade instalando estátuas cafonas e desconectadas com a história da região e placas de rua com suportes que parecem estar prontas para receberem algumas samambaias. Sendo justo vi como melhorias de fato o aterramento da fiação e a melhora das calçadas e instalação de piso tátil. Mas o que foi feito de bom não vai além disso.

placas de rua
Placas de identificação de rua em desacordo com mobiliário urbano paulistano, na esquina das avenidas Ipiranga e São João. Embelezamento não deveria desrespeitar o padrão de placas e postes da cidade. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

NÃO QUEREMOS UM CENTRO "INSTAGRAMÁVEL"

A julgar pela instalação das estátuas colocadas no famoso cruzamento paulistano fica evidente que a prefeitura não quer um centro melhor. O que ela quer é um centro "instagramável" onde pessoas sem o menor senso estético, subcelebridades ou gente desconectada com o patrimônio da cidade vão fazer fotos e vídeos para publicar nas redes sociais um centro que não existe na realidade. Isso se o celular deles não for furtado antes, numa região onde roubos acontecem quase que 24 horas por dia.

A real iniciativa de colocar as estátuas ali parece ser criar uma falsa sensação de um centro melhor, especialmente aos frequentadores do Bar Brahma que são tão alienados quanto os frequentadores da Sala São Paulo, esta última isolada no terror da Cracolândia que só acabou para os olhos de nossas autoridades.

Os motoristas são atacados quando param no semáforo do cruzamento da avenida Rio Branco e da rua General Osório. As imagens mostram quando grupos vão em direção aos automóveis e tomam pertences que estão dentro dos veículos
Pesadelo "instagramável": Motoristas sofrem arrastão ao parar em semáforo da avenida Rio Branco, região central de São Paulo. - Reprodução/TV Folha

Acha que é exagero? No dia da inauguração da esquina "requalificada", horas antes de o Prefeito chegar para tirar foto abraçado com um Adoniran Barbosa que mais lembra o Vovô Gepeto do Pinóquio, uma pessoa ficou gravemente ferida a poucos metros dali em uma tentativa de assalto. Um homem aguardava o ônibus no ponto quando foi abordado por ladrões de celular e, ao resistir, foi atacado por um objeto pontiagudo no tórax. Ele ficou deitado no meio-fio até o socorro chegar, uns bons minutos depois. Os ladrões? Fugiram.

ESTÁTUAS DESCONECTADAS

Ali foram instaladas quatro estátuas, delas apenas uma tem total sentido com aquele local e uma outra repete um outro monumento paulistano, ou seja, não houve um estudo mais aprofundado sobre o que colocar ali.

Esculturas instaladas no cruzamento das avenidas Ipiranga e São João
Escultura de Adoniran Barbosa, em frente ao tradicional Bar Brahma no cruzamento das avenidas Ipiranga e São João. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Começando pelo estátua de Adoniran Barbosa, instalada quase que grudada à porta do Bar Brahma. Aquela esquina não é famosa por conta dele, mas por conta de Caetano Veloso com sua música Sampa e que seria uma ótima homenagem em vida ao cantor. Aliás, ao lado da estátua de Adoniran tem uma placa da Memória Paulistana homenageando Veloso, mas pelo visto não notaram que ela estava ali e quem é de fora vai confundir um com o outro.

Memoria Paulistana
Conflito de homenagens, placa faz referência a Caetano Veloso enquanto a escultura é de Adoniran Barbosa. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Depois o engraxate. É muito legal a figura do engraxate que, reconheço, estava espalhada por todo o centro de São Paulo. Mas convenhamos porque gastar dinheiro público para fazer um monumento que já existe uma obra de proposta similar? Chama-se Contando a Féria e está na praça João Mendes.

Escultura de engraxates
Monumento paulistano "Contando a Féria" instalado na praça João Mendes, região central de São Paulo. Figura do engraxate já era representada nos monumentos da cidade. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Agora vem a escultura do lambe-lambe. Quem em algum momento recorda de ter visto algum lambe-lambe em fotografias antigas do cruzamento das avenidas Ipiranga e São João? Possivelmente ninguém, afinal eles eram conhecidos e famosos em outras áreas de São Paulo, áreas estas que poderiam receber melhor essa obra: o parque da Luz, onde fizeram história, e a praça da República.

Para finalizar aquela que talvez é a única estátua que se adequa de verdade naquele local: Paulo Vanzolini, zoólogo e compositor de "Ronda", canção que homenageia a avenida São João. A obra parece ser a única realmente estudada para estar ali e que cuja arte remete ao que a esquina e a região representam.

ASSÉDIO A QUEM FOTOGRAFA ADONIRAN

Algumas pessoas entraram em contato comigo reclamando do assédio que é feito por funcionários do Bar Brahma quando estão fotografando a escultura. Segundo eles ao chegarem perto da estátua para tirar uma foto são insistentemente convidados a entrar no estabelecimento e diante da negativa das pessoas são convidadas a sair do local, para não atrapalhar a entrada do bar.

Fui pessoalmente ao local e constatei que isso realmente acontece. Mesmo em horários de pouco movimento – estive por volta das 11h da manhã – a área onde fica a estátua estava isolada por bloqueios do bar e ao me aproximar para fotografar junto com minha esposa fui "convidado" de maneira irritante a entrar no estabelecimento. Questionei a pessoa que parecia ser chefe de salão sobre se a estátua era privada ou pública e a mesma nos deu às costas.

Esculturas instaladas no cruzamento das avenidas Ipiranga e São João
Enquanto as demais esculturas ficam mais próximas da esquina a de Adoniran foi colocada junto à entrada do Bar Brahma, em área que costumam isolar. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Encaminhei questionamento sobre o fato para assessoria da Fábrica de Bares, responsável pelo Bar Brahma a respeito deste assédio mas até o momento, 10 dias depois, não recebi qualquer retorno.

VAI SER ASSIM?

De fato, começou muito mal a suposta recuperação do centro paulistano. Ao custo de R$ 4,9 milhões a impressão que tenho é que será um ralo de dinheiro público sem qualquer estudo mais aprofundado, com obras de gosto duvidoso e de benefício questionável ao centro e ao bem-estar do paulistano. A conferir.

NOTAS:

Após a publicação do artigo a SP Urbanismo entrou em contato com este colunista e enviaram suas notas, onde respondeu os pontos debatidos nesta pauta. Embora este colunista não entenda que as respostas são plenamente satisfatórias, optei por publicar a nota integralmente a seguir.

" A Prefeitura de São Paulo, por meio da SP Urbanismo, informa que a Requalificação da Esquina Histórica de São Paulo é mais uma iniciativa do Município em seu amplo plano de intervenções em diversas escalas para a recuperação da região central. O projeto para o cruzamento mais famoso da cidade busca contribuir para o resgate da vocação do centro histórico como espaço público democrático e diverso.
As placas de identificação das ruas instaladas na Esquina Histórica foram desenvolvidas exclusivamente para o local para destacar, na forma da informação das placas toponímicas, a importância da esquina para a cidade. O desenho final foi escolhido pelo então prefeito Bruno Covas e pelos responsáveis pelo projeto arquitetônico.
As esculturas instaladas no local são uma homenagem a figuras marcantes, seja da cultura ou do cotidiano do centro da cidade, no século passado e, portanto, um estímulo ao resgate da nossa memória. Todas as esculturas foram desenvolvidas para ser um convite à interação lúdica com a população, aproximando cidadão e cidade e despertando a identificação e o sentimento de pertencimento num local que é a esquina mais fotografada de São Paulo.
As esculturas do músico e compositor Adoniran Barbosa e do jovem engraxate em nada se assemelham, na forma e na lógica de inserção urbana, àquelas existentes no Bixiga e na Praça Doutor João Mendes. A proposta executada para a Esquina Histórica traz um Adoniran em tamanho original, enquanto a versão no Bixiga é um busto do artista. A escultura do engraxate na esquina apresenta-se em posição de trabalho, ou seja, mais interativa em comparação a outra homenagem em um pedestal.
A artista plástica Christina Motta é reconhecida no Brasil e no exterior por seu trabalho. Ela é autora da maioria das esculturas de bronze contemporâneas na cidade do Rio de Janeiro. A técnica, instalações e parâmetros atenderam os autores do projeto arquitetônico, que formam o corpo técnico da SP Urbanismo. A saber, por exemplo, a pátina colorida em bronze em tamanho original usada nas obras é uma técnica autônoma, controlada por poucos técnicos no mundo.
Em relação à placa do inventário Memória Paulistana, não há conflito com os novos elementos inseridos na paisagem urbana.
O acesso às esculturas e demais intervenções na Esquina Histórica é livre a qualquer cidadão. O descumprimento dessa postura poderá ser alvo de fiscalização dos órgãos competentes.

ADENDO: A homenagem a pessoas vivas é vedada na administração pública municipal. Por essa razão, não seria permitida a instalação de uma escultura do cantor Caetano Veloso no local."

Erramos: o texto foi alterado

Artigo atualizado com a inserção de nota da SP Urbanismo.

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