Saúde em Público

Políticas de saúde no Brasil em debate

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Técnica e política para melhores serviços de saúde

Recife Monitora é um exemplo de sucesso do equilíbrio entre técnica, política e participação social

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Arthur Aguillar Miguel Lago

No Livro A Democracia Equilibrista, Gabriela Lotta e Pedro Abramovay analisam um conjunto de reformas desenhadas e implementadas pelo governo federal entre 2002 e 2016 para entender o que pode determinar a efetividade das políticas públicas do Brasil. A tese do livro é clara: o Estado é mais capaz de dar respostas à altura de seus cidadãos quando o processo de formulação de iniciativas públicas consegue equilibrar-se entre dimensões que por vezes se tensionam. Primeiro, a política, aqui representada pelas contradições entre os interesses de um conjunto diverso de atores políticos e da sociedade civil. Segundo, a técnica, representada pela evidência científica e pela capacidade das burocracias de ampliar sua habilidade de prover programas e serviços para a população.

Desde 2021, o IEPS e a Umane trabalham juntos com a Prefeitura do Recife no Programa Qualifica Atenção Básica para desenhar e implementar políticas que melhorem a qualidade dos serviços de saúde. Dentro das frentes de atuação do programa está o Recife Monitora, uma política que utiliza indicadores de resultados, processos de trabalho e a perspectiva das usuárias e usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) para avaliar a qualidade dos serviços de atenção primária, condicionando incentivos monetários aos profissionais da rede municipal de saúde aos resultados atingidos. A construção dessa política junto à Prefeitura do Recife nos mostra a importância deste sutil equilíbrio entre técnica e política, tão bem descritos pelos autores de A Democracia Equilibrista.

O Recife Monitora

Todo morador e moradora da cidade do Recife que vai a uma Unidade Básica de Saúde (UBS) para realizar seu pré-natal, ou qualquer outro serviço de Atenção Primária, recebe ao final de sua consulta uma mensagem de Whatsapp, solicitando uma avaliação de seu atendimento. Existe também a possibilidade de fazer reclamações e sugestões sobre a qualidade do atendimento e o funcionamento da rede de saúde como um todo em seu território. Essas avaliações, por sua vez, além de servirem como insumo estratégico para a gestão local, são utilizadas para determinar o pagamento por desempenho de médicos e médicas, enfermeiras e enfermeiros e demais profissionais de saúde envolvidos no atendimento.

Fachada de uma Unidade de Saúde da Família em Recife, Pernambuco. A unidade de saúde é amarela e azul.
Unidade de Saúde da Família em Recife, Pernambuco. - Foto: Andréa Rêgo Barros

Desde dezembro, a plataforma já teve mais de 20 mil respostas, equivalentes a mais de 1% da população do Recife. A experiência desta colaboração nos ensina sobre o sutil equilíbrio entre dimensões técnicas e políticas para a obtenção de resultados dentro dos governos.

A Técnica

O Recife Monitora combina um conjunto de mecanismos que são há muito tempo estudados na literatura de políticas públicas. Primeiro, cria incentivos, tanto monetários, como o pagamento direto aos profissionais de saúde, quanto não monetários, como dar publicidade às opiniões da população sobre a qualidade do atendimento. Segundo, utiliza frameworks canônicos da saúde pública desenvolvidos para determinar e mensurar a qualidade dos serviços de saúde.

Terceiro, recorre a uma tendência, cada vez mais prevalente nos sistemas de saúde mais avançados do mundo, de aproximar o cidadão e a cidadã do processo de desenho, implementação e avaliação das políticas públicas. Uma tendência que estimula a cocriação entre usuário final e profissionais de saúde da melhor experiência possível dos serviços de saúde. Do ponto de vista teórico, a criação de incentivos, a mensuração precisa da qualidade dos serviços e o envolvimento do paciente na produção das políticas são todos mecanismos que conduzem à melhoria dos serviços públicos.

É importante enfatizar que essa iniciativa, por si só, não seria factível e nem suficiente para induzir uma melhora nos serviços de saúde. Ao longo destes dois anos a Prefeitura do Recife buscou recompor as equipes de saúde que estavam incompletas e está neste momento criando um novo conjunto de lideranças diretamente responsáveis por melhorar processos e resultados em cada unidade básica de saúde. Para além disso a Prefeitura conta com os Apoios de Território, profissionais qualificados que servem como elo entre a gestão e a ponta na implementação das políticas.

A Política

Para além da técnica, a política também esteve e está presente em todo o processo de desenho e implementação do Recife Monitora. Todas as etapas do projeto foram construídas com o envolvimento radical de profissionais de saúde, da assistência e da gestão, houve mobilização de diferentes instâncias da Prefeitura na tomada de decisões sobre a iniciativa e também um trabalho conjunto com o gabinete do prefeito para institucionalizar a política.

Antes sequer do Recife Monitora começar, fizemos mais de 12 oficinas, consultando dos Agentes Comunitários à Secretária de Saúde, dos médicos de família aos apoios de território. No total, mais de 200 pessoas foram ouvidas nesta etapa. Em seguida, foi criado um grupo de trabalho junto com diversas integrantes da rede para desenhar os indicadores que seriam mensurados em todos os instrumentos do projeto.

Mulher negra de costas com colete da Prefeitura do Recife nas cores amarelo e azul escrito "Agente Comunitário de Saúde"
Agente Comunitário de Saúde de Recife, Pernambuco. - Foto: Andréa Rêgo Barros/Prefeitura do Recife

A implementação do projeto só se deu após longas negociações com as entidades de classe a que estão vinculados os profissionais de saúde da rede do Recife. Este processo permitiu à Prefeitura do Recife chegar a uma ferramenta final que fosse ao mesmo tempo tecnicamente correta e politicamente viável. Com um desenho mais maduro nos níveis técnico e político, o programa foi institucionalizado por meio de uma lei municipal, apresentada à Câmara dos Vereadores pela Prefeitura e promulgada no último mês de dezembro.

A experiência do Recife Monitora reforça o argumento dos autores de "A Democracia Equilibrista": sem uma costura delicada entre técnica e política as cidades brasileiras não avançarão no enfrentamento de seus principais desafios. Entre a técnica e a política, é necessário que escolhamos ambas, cientes que o fazer das políticas públicas é sempre um processo de descoberta.

Arthur Aguillar é Diretor de Políticas Públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). Miguel Lago é Diretor Executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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