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Conectando universidades, sociedade e ciência

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Descrição de chapéu universidade

Faremos frente à realidade paralela?

Diálogo entre universidade e sociedade é essencial para derrotar ódio e mentiras

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São Paulo (SP)
Dois chapéus de burro feitos a partir de um retângulo branco com duas orelhas cinzentas saindo da parte de cima e um elástico saindo da parte de baixo, um dos chapéus está deitado e o outro de pé.
Andres Sandoval / SoU_Ciência

São inúmeras as tarefas para a reconstrução do Brasil nas próximas décadas, e em novas bases. Nesse processo, universidades e institutos de pesquisa terão diversas missões e, provavelmente, uma delas será a mais crucial: conseguir fazer frente e desarmar as máquinas de mentiras, conteúdos tóxicos, negacionismo e ódio – que ainda são contagiosas e eficientes para desconectar segmentos da população da realidade partilhada, das evidências históricas e científicas e das verdades consensuadas. Numa pandemia, essa máquina de mentiras foi ainda mais mortal e perversa.

Será possível "resgatar" pelo menos parte dessa população? O que as instituições de educação conectadas à sociedade, mídia e governos podem fazer?

Diversos pesquisadores e jornalistas têm apontado os circuitos de (des)informação criados por lideranças com interesses particulares (em geral não republicanos e não democráticos). Capilarizados, chegaram a parcelas da população despreparada para reagir, mobilizando crenças, explorando a boa-fé, a ignorância, preconceitos e ressentimentos.

Sites, blogs, youtubers, tiktokers, redes públicas ou fechadas, deep web, plataformas de conteúdos e streamings, atuando em bloco ou mais isoladamente, mas sempre em sinergia, formaram um sistema inicialmente de "disputa de narrativas" e "pseudo teorias" que foi se metamorfoseando na profecia autorrealizada: difundidas com tal intensidade, pretenderam recriar o real noutro plano, paralelo, desconectado das evidências científicas, documentais e da literatura consolidada.

Há quase 60 anos atrás, Darcy Ribeiro, formulador e reitor da recém-criada UnB, havia consolidado em texto as tarefas da "universitária necessária" ao país: deveria se relacionar com a sociedade em todos os níveis, na formação profissional, na pesquisa e experimentação, na extensão e assistência, na colaboração com o serviço público e com os setores produtivos, no fortalecimento da educação em todos os níveis, e na defesa do regime democrático. Para esta última tarefa, o desafio seria interno e externo, garantindo a diversidade de vozes e pensamentos dentro das universidades e atuando pelo desenvolvimento cultural do país para uma integração autônoma dos indivíduos na civilização do seu tempo.

Para Darcy Ribeiro, que completaria 100 anos em 2022, o papel social da universidade se cumpriria quando ela saísse de trás dos seus muros, amplificasse a conexão com a sociedade e contasse com instrumentos de comunicação de massa: rádio, TV, setor editorial, imprensa e cinema (e hoje, certamente ele incluiria as diversas modalidades digitais). Segundo Darcy, "somente possuindo-os, a universidade poderá habilitar-se a cumprir as tarefas de elevação do nível de conhecimento e de informação da sociedade nacional, de luta contra a marginalidade cultural de certas camadas da população e de combate às campanhas de alienação, colonização cultural e doutrinação política a que está submetida a nação" (p.165).

O Brasil conta, meio século depois, com ações nessa área, mas ainda muito aquém do que poderia ser. E, como alerta Paulo Freire, uma Universidade Comunicadora ocorre em via de mão dupla. Não deve apenas levar conteúdo à sociedade, mas construir um processo dialógico, em que ambas as partes se (re)conhecem e se (in)formam conjuntamente.

Pensando a Universidade Comunicadora no Brasil do século XXI, e com as tarefas da reconstrução nacional pós-Covid e pós-Bolsonaro, as propostas do SoU_Ciência e de 18 entidades nesta área, e que assinaram um documento completo, são as seguintes:

1. Ampliar os canais de diálogo, escuta e articulação universidade-sociedade, criando conselhos e fóruns de participação, ouvindo demandas e construindo caminhos colaborativos, em especial em conjunto com movimentos sociais;

2. Assumir a comunicação como frente estratégica, defendendo políticas públicas que democratizem o sistema de comunicação e garantam esse direito fortalecendo redes comunitárias, populares, alternativas e públicas, com a produção de conteúdos e investimento em equipes, audiovisual e plataformas digitais;

3. Ampliar e fortalecer a rede de TV Universitárias, integrando com as TV Educativas do país;

4. Criar cotas em todas as TV abertas para programas de divulgação e popularização científica, disponibilizando esses conteúdos nas plataformas digitais;

5. Criar fomento para divulgadores da ciência e para o jornalismo científico, em todas as áreas do conhecimento, para que tenhamos em todos os canais cientistas e comunicadores atuando com apoio institucional e de recursos;

6. Incluir nas avaliações institucionais de programas, cursos, docentes a comunicação, divulgação científica, e difusão cultural como quesitos relevantes;

7. Utilizar de linguagens e meios de comunicação plurais para atingir diferentes segmentos da sociedade;

8. Criar uma frente ampla de combate ao negacionismo, ao revisionismo histórico e à fake science (como fact check) e trazer elementos para permanente judicialização contra charlatanismo e produtores de mentiras disfarçadas de ciência;

9. Contribuir para o acesso e a transparência de dados no âmbito das instituições de ensino superior e criar estratégias para combater o mau uso da Lei Geral de Proteção de Dados para justificar o "apagão de dados".

Se universidades, sociedade e poder público, em colaboração com a mídia profissional e ética, não assumirem decisivamente essa tarefa, seguiremos assombrados por uma parcela do país polarizada por narrativas de ódio, mentiras e memes. O problema é que o produto amplamente ofertado pelos mercadores da realidade paralela e do ressentimento real tem sido muito mais eficiente do que o limitadamente ofertado pelas universidades, ainda em linguagem de difícil compreensão pelos não especialistas. O desafio é urgente: ou construímos já a Universidade Comunicadora, e amplificamos a difusão em escala de massa e em diálogo com a população, ou seguiremos em grande desvantagem - e o futuro cobrará seu preço.

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