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Sem anistia aos crimes da pandemia

STF reabre inquérito e maioria dos brasileiros quer justiça e reparação

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São Paulo (SP)
Imagem de fundo preto e desenhos de contorno branco ilustrando o ex-presidente Jair Bolsonaro com tentáculos saindo de sua boca, o ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello com uma máscara sobre o nariz e olhos brancos, junto de outras figuras ao fundo com tentáculos em volta, uma imagem do coronavírus no topo à direita, e na base da imagem há lápides, hospitais e cilindros de oxigênio, e em volta dos desenhos há nuvens de gás verde.
Bitado (Ricardo Ireno)/SoU_Ciência

Nesta semana o Supremo Tribunal Federal reabriu os inquéritos para apurar as responsabilidades sobre os crimes da pandemia de Covid-19 no Brasil. O STF anulou a decisão da Justiça Federal de Brasília, que havia arquivado o processo e determinou que a Procuradoria Geral da República retome a análise dos seguintes crimes cometidos por Bolsonaro e equipe: prevaricação, epidemia com resultado morte, emprego irregular de verbas públicas, falsa comunicação, entre outros descritos pela Polícia Federal.

Mesmo com subnotificação, o Brasil está entre os três países com população superior acima de 10 milhões de habitantes com mais mortes per capita por Covid-19 (dados Our World in Data, até março de 2023). Em primeiro lugar está o Peru, com 6,4 mil mortos por milhão de habitantes, em segundo os EUA com 3,3 mil mortos por milhão e quase empatado o Brasil com 3,2 mil mortos por milhão.

Lembramos que países do Leste Europeu em situação mais grave que o Brasil não são comparáveis, pois têm populações pequenas, de 2 a 10 milhões de habitantes, menos que a cidade de São Paulo. Já os EUA, país muito mais rico (aliás, o país rico mais desigual do mundo), viveu tragédia similar a brasileira, também presidido no início da pandemia por um negacionista. Os EUA, pior que nós, não possuem saúde pública universal, e nem suporte comparável ao SUS. Mas, a partir de janeiro de 2021, conseguiram derrotar Trump e o novo presidente Democrata adotou todos os protocolos adequados e acelerou a vacinação.

Os crimes da pandemia no Brasil são inúmeros e foram fartamente descritos no Relatório da CPI e na pesquisa Linha do Tempo da Estratégia Federal de Disseminação da Covid do CEPEDISA da Faculdade de Saúde Pública da USP. O Centro SoU_Ciência também pretende colaborar na coleta e organização de evidências desses crimes e da sua rede. Estamos montando um banco de dados para acesso público com declarações e manifestações dos diversos agentes que compuseram o que denominamos de "necrossistema da pandemia Covid-19 no Brasil". O material está sendo organizado por categorias temáticas e por agentes e instituições participantes da rede negacionista que ampliou o número de mortes no Brasil. Servirá a pesquisadores, processos judiciais, enlutados e qualquer cidadão interessado no tema.

Estimamos coletar mais de mil evidências, muitas delas de materiais já apagados das redes sociais e canais de Internet, mas que constituem prova material das condutas criminosas de diversos agentes, não só do então presidente e do Governo Federal, mas também de influenciadores e jornalistas negacionistas, médicos e entidades, planos de saúde, farmacêuticas do kit Covid, empresários, militares, religiosos, prefeitos e governadores que atuaram contra as evidências, consensos científicos e orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde). O banco de dados também poderá ser pesquisado por temas indexados, como: minimização dos níveis de risco e gravidade do vírus; a tática criminosa de contágio por "imunidade de rebanho"; embates contra vacinas, uso de máscara e isolamento; problemas de ética médica; o caso de Manaus; entre outros.

Além do banco de dados, estamos preparando materiais de comunicação, como animações e um mapa interativo multimídia que permitirá aos interessados navegarem com maior facilidade na pesquisa de conteúdos, atores, temas e evidências, acessando áudios, vídeos, imagens e textos. Esperamos com isso colaborar nas investigações, no esclarecimento público, na justiça, memória e reparação dos vitimados e enlutados com os crimes da pandemia.

Outra ação do SoU_Ciência tem sido a realização de levantamentos nacionais de opinião pública, sobre vários temas relacionados à pandemia e suas sequelas. Nosso último levantamento, com mais de 30 perguntas e realizado entre 5 e 10 de junho com 1,3 mil pessoas em todo o Brasil, será em breve divulgado em mais detalhes em matérias na mídia e no nosso site. Nele foi possível reconhecer o impacto da pandemia: além dos mais de 700 mil mortos, 41% dos entrevistados acima de 18 anos declararam ter sido contagiados pelo vírus ao menos uma vez, o que equivale a 66 milhões de pessoas. Ou seja, quase o dobro dos 37 milhões de casos oficialmente notificados pelo governo brasileiro, o que evidencia a subnotificação no país.

Além disso, o luto pelas perdas é enorme: mais da metade da população (51%) declara que perdeu familiar ou amigo. É um cenário de trauma de guerra, que deve ser tratado com muitas ações complementares, tanto restaurativas quanto de "justiça de transição", do negacionismo para a ciência, na conduta das políticas públicas e de Estado.

Antecipamos aqui apenas dois resultados que nos ajudam a compreender o apoio da sociedade à reabertura dos inquéritos sobre os crimes da pandemia no Brasil. No gráfico abaixo vemos que 52% dos entrevistados defendem que sejam julgados e, se culpados, condenados os responsáveis pelos crimes da pandemia. Quando analisamos o perfil do entrevistado pela escolha do candidato no segundo turno das eleições presidenciais de 2022, vemos que 79% dos eleitores de Lula são pela abertura dos processos e julgamento, enquanto a maioria dos bolsonaristas quer anistia e encerramento dos inquéritos. A divulgação completa da nossa pesquisa irá mostrar em detalhes esses e outros resultados polarizados politicamente e como isso influiu na percepção da pandemia.

Gráfico com a questão "Você acha que os eventuais crimes associados às mais de 700 mil mortes na Pandemia devem ser julgados e condenados?", separando as respostas entre Sim, Não e Não sei, junto de comparações das respostas entre votantes de Lula e Bolsonaro nas eleições de 2022.
Fonte: SoU_Ciência, pesquisa realizada com Instituto IDEIA

Contudo, quando a pergunta dá menos margem à polarização, é interessante notar uma certa convergência na escolha de ações. O segundo gráfico, abaixo, é um exemplo. Ao tratarmos das formas de justiça, memória e reparação, há um certo alinhamento até surpreendente. Mesmo que apoiando em menor intensidade, a ordem de ações a serem empreendidas é parecida. A primeira delas é "Criar uma Comissão da Verdade para apurar os crimes": tanto eleitores de Lula (48%) quanto de Bolsonaro (34%) entendem que essa é a medida prioritária inicial a ser tomada. Na sequência estão: a indenização de familiares de vítimas e a criação de um Tribunal Especial para acelerar os julgamentos.

Gráfico com a pergunta "O que você acha que deve ser feito sobre os crimes da pandemia?", com as opções Criar uma Comissão da Verdade, Indenizar vítimas e crianças que perderam pais, Criar um Tribunal Especial para acelerar os julgamentos, indenizar profissionais de saúde na linha de frente, Oferecer ações de saúde mental para enlutados, Julgar nos trâmites normais da Justiça, Criar memoriais em homenagem a vítimas e profissionais da saúde, e Pedir apoio a Tribunais Internacionais, com as respostas divididas entre quem votou em Lula ou Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2022.
Fonte: SoU_Ciência, pesquisa realizada com Instituto IDEIA

A reabertura dos inquéritos pelo STF permite que o Brasil dê um passo histórico, que não foi capaz de dar em relação aos crimes da ditadura. Devemos imediatamente iniciar os processos judiciais, julgamentos e condenações.

Estamos diante da maior tragédia de saúde pública da história do Brasil, com inúmeros envolvidos numa rede de necropolítica. Graças ao SUS e às nossas universidades e institutos de pesquisa públicos a tragédia não foi maior. É preciso passar a história a limpo para que não mais se repita. Do controle social sobre as políticas públicas e de Estado, ao compromisso com as evidências científicas; do currículo das faculdades de medicina à conduta ética de conselhos profissionais; há muito o que fazer. Mas, tudo isso depende, sobretudo, que os julgamentos comecem já e sejam céleres, como está ocorrendo com os golpistas de 8 de janeiro.

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