Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Ressurgimento psicodélico agrada à esquerda e à direita

Maior conferência celebra normalização entre paradoxos e incertezas

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Do enviado especial a Denver
Várias pessoas caminham em prédio monumental
Público chega à conferência Psychedelic Science 2023 em Denver, Colorado - Mardelo Leite/Folhapress

A conferência Psychedelic Science 2023 em Denver, Colorado (EUA), começou com um retrato paradoxal do retorno dos psicodélicos à medicina. No teatro Bellco, cerca de 5 mil dos mais de 12 mil inscritos ouviram elogios às substâncias ainda proibidas de dois opostos no espectro político, Rick Doblin e Rick Perry.

Doblin foi aplaudido de pé quando entrou no palco vestido de branco. Fundador e líder da Associação Multidisciplinar para Estados Psicodélicos (Maps, em inglês), promotora do megaevento, o ex-hippie contestador da guerra do Vietnã é o maior responsável pela realização de testes de fase 3 de MDMA (ecstasy) para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

Ele anunciou que sua ONG dará entrada ainda este ano no pedido de autorização à agência de fármacos FDA para o protocolo de psicoterapia apoiada por MDMA para tratar a condição mental que acomete centenas de milhares de veteranos nos EUA. E previu que a licença deverá sair no meio do ano que vem.

Se e quando a Anvisa americana der essa autorização, nada segurará o avanço das terapias psicodélicas, apoiadas no número explosivo de estudos científicos. O próximo composto na fila de regulamentação federal, neste caso como antidepressivo, é a psilocibina de cogumelos Psilocybe, de resto já descriminalizados nos estados Oregon e Colorado.

Homem de branco fala em conferência com telão mostrando imagens de cogumelos
Rick Doblin, da Maps, fala na conferência Psychedelic Science 2023 - Mardelo Leite/Folhapress

"O futuro é psicodélico", bradou Doblin, sob avalanche de aplausos. Ele lançou a proposta de uma meta de Trauma Zero para o ano 2070, ao estilo dos compromissos internacionais sobre emissões de carbono e mudança do clima.

A Maps, contou, está desenvolvendo métricas para formatar um indicador de Trauma Nacional Bruto, que serviria para monitorar o objetivo Trauma Zero. E convocou os presentes para a mobilização:

"Cada um de nós pode sair do armário psicodélico, ou do armarinho de drogas psicodélicas", recomendou. Falar sobre o assunto com familiares e amigos, contar suas experiências, desfazer preconceitos que sobrevivem mesmo em meio ao chamado renascimento psicodélico.

Doblin fechou seu discurso projetando um código QR no telão para a Maps receber doações. Era o elefante invisível na sala: nos últimos anos, apesar dos avanços científicos e clínicos, o fluxo de investimento em pesquisa e startups minguou, e surgem dúvidas quanto ao fôlego financeiro da organização para sustentar a fase final da laboriosa regulamentação pela FDA.

O discurso seguinte ficou a cargo de Rick Perry, ex-governador republicano do Texas e ex-secretário de Energia dos EUA na primeira metade do governo Trump. Trajando terno escuro, ele mesmo começou chamando atenção para o contraste entre ele e Doblin.

Qualificou-se como homem de direita, mas engatou uma defesa das pesquisas com psicodélicos. Perry contou como sua aproximação com o tema começou ao conhecer Marcus Luttrell, antes de o fuzileiro naval se tornar famoso com o livro "O Grande Herói" e o filme de mesmo título, sobre emboscada que sofreu no Afeganistão.

Depois de conhecer o ex-combatente numa base naval, Perry o convidou para, quando estivesse por Austin, dar uma passada na residência do governador. Luttrell foi, e acabou morando lá por mais de dois anos, meio que adotado pelo casal residente.

Luttrell e seu irmão Morgan, hoje deputado pelo Texas, se trataram com os psicodélicos ibogaína e 5-MeO-DMT, mas fora de seu país, onde as duas drogas permanecem ilegais. Perry se tornou um defensor das pesquisas com psicodélicos e diz que pede a seus aliados ainda resistentes para "olhar os resultados", não suas convicções sobre drogas.

Por essa razão estava no palco, justificou, elogiando o exemplo de Doblin e milhares de presentes no auditório: "Vocês tiveram a coragem de perceber que sua reputação não era mais importante do que a vida dessas jovens pessoas, que tanto fizeram por seu país. Vocês estão literalmente mudando o mundo".

Perry fechou sua fala com alerta cifrado de que a grande história do renascimento psicodélico, culminando na enorme conferência, encerra também um risco moral: "Quero ter certeza de que vamos fazer isso da maneira correta".

Pode ter sido uma referência ao uso não terapêutico ("recreativo") de psicodélicos, mas ele não especificou. Há quem tema, decerto muitos conservadores, que esses alteradores de consciência sigam a trilha da cânabis, cujo uso medicinal abriu caminho para a regulamentação da venda sem prescrição.

A maioria da plateia, seguramente, nada teria contra essa liberalização. O próprio Doblin afirmou que a eventual disseminação de cultivadores domésticos de cogumelos não seria ruim para os negócios, porque faria parte de uma mudança cultural a aliviar o estigma dessas "drogas".

Não é esse o modelo seguido por cientistas e investidores, que têm por estratégia confinar psicodélicos ao uso terapêutico e ao ambiente clínico, além de proteger por meio de propriedade intelectual aplicações a transtornos mentais definidos. Até a Maps participa dessa lógica ao criar uma empresa, Maps PBC, ainda que sem fins lucrativos, para sobreviver como ator relevante na história.

Muitos dos novos e velhos hippies na audiência abominam essa via da medicalização capitalista dos psicodélicos, e mesmo assim ovacionam Doblin como herói. Com justiça, porque ele dedicou 37 da vida à missão de ressuscitá-los para medicina, que agora está perto de ser cumprida.

Nesse processo, o impulso contestador da primeira encarnação da psicodelia na contracultura arrefeceu. Do pacifismo dos anos 1960/70, restou o muito fotografado cartaz na entrada do Centro de Convenções com o logo da conferência: "Não se permitem armas no prédio".

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

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