Grupo publica estudos falsos para tentar provar viés nas ciências humanas

Pesquisadores não envolvidos criticam trabalho por ter induzido revistas ao erro

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São Paulo

Um artigo recentemente publicado na revista especializada Sexuality & Culture encorajou homens heterossexuais a praticarem autopenetração anal com acessórios a fim de reduzir seus sentimentos transfóbicos e aumentar os valores feministas.

Outro, veiculado no periódico Gender, Place and Culture, argumentou que parques para cães, por serem espaços tolerantes a estupros e a opressão desses animais, podem servir de modelo para se analisar o comportamento humano sobre essas questões. 

 
James Lindsay, Helen Pluckrose e Peter Boghossian, que criaram 20 artigos falsos e os submeteram a revistas de estudos de minorias
James Lindsay, Helen Pluckrose e Peter Boghossian, que criaram 20 artigos falsos e os submeteram a revistas de estudos de minorias - Divulgação
 

Embora tenham saído em publicações internacionais de prestígio e recebido entusiasmados elogios dos pareceristas, tais estudos são, na realidade, falsos.

O embuste acadêmico, revelado na semana passada, foi perpetrado por três pesquisadores. O objetivo do trio era desmascarar supostos vieses políticos de revistas especializadas em estudos feministas, de gênero, sexualidade, raça e áreas correlatas, que comprometeriam a qualidade e a veracidade dos artigos nelas publicados.

Para tanto, Helen Pluckrose, James Lindsay e Peter Boghossian passaram quase um ano redigindo 20 estudos fictícios, os quais foram enviados a periódicos importantes. Até agora, sete desses textos foram aceitos e quatro, publicados. Outros sete estão sob revisão das publicações.

Iniciativas como a do trio não são novidade no meio acadêmico. No mais famoso experimento do tipo, o físico Alan Sokal publicou em 1996 um falso artigo que mesclava filosofia pós-moderna e gravidade quântica em um reputado periódico de estudos culturais. Em 2009, um aluno da Universidade Cornell teve aceito um artigo produzido com um software que gera textos gramaticalmente corretos, mas sem sentido.

Em 2014, um cientista da computação escreveu e publicou num periódico um texto composto inteiramente da frase “Get me off your fucking mailing list”, (Tire-me da sua maldita lista de email, em tradução livre). Neste ano, jornalistas publicaram um artigo que afirmava que o extrato de própolis é mais eficaz contra o câncer do que as quimioterapias convencionais. Os exemplos abundam.

O projeto do trio, que eles descrevem como uma investigação etnográfica, buscou “entender e expor os problemas éticos e epistemológicos de certos campos das ciências humanas”, disse à Folha James Lindsay, um dos autores da fraude. “Esse objetivo”, prossegue, “carrega o corolário de tentar ilustrar por que é um problema que esse tipo de conhecimento sirva de base para políticas e instituições.”

Segundo Lindsay, a conclusão do experimento é que há poucas razões para acreditar que o conhecimento produzido nesses campos de estudo seja confiável. “Você acreditaria em uma área cuja principal revista aceita e elogia um artigo sobre a cultura de estupro dos cães?”, diz.

A razão para esse descrédito, explica Lindsay, é que tais campos foram dominados por uma visão política que mistura ativismo e conhecimento e promove uma cultura de vitimização e indignação de certos grupos. “Em particular, é duvidoso que trabalhos produzidos nessas áreas sejam capazes de gerar conhecimento sobre o mundo, as pessoas que vivem nele e as sociedades que elas formam”, diz.

O pesquisador e professor da FGV Matias Spektor considera valorosa a iniciativa do trio americano. “Eles demonstraram algo já sabido, mas para o qual faltava prova contundente: que o padrão mínimo de qualidade de boa parte das pesquisas sobre minorias em geral muitas vezes não é análogo ao que se espera de outras áreas”

Assim, para Spektor, estudos voltados para a proteção de minorias acabam enfraquecidos sempre que eles são sequestrados por argumentos politicamente orientados e não empiricamente embasados.

Tal discussão, acredita o pesquisador brasileiro, adquire ainda mais importância numa época em que a intolerância está mais explícita. “A melhor maneira de fazer frente à desfaçatez contra minorias que tomou conta da conversa pública, à noção de que as minorias são cheias de 'mimimi', é produzir pesquisa de qualidade, com evidência empírica devidamente testada, que leve a recomendações de políticas públicas que não sejam baseadas em achismos.”

A cientista social Rosana Pinheiro-Machado, professora da Universidade Federal de Santa Maria, concorda que o trio expõe uma realidade da produção acadêmica nas ciências humanas. “Os papers acabam tendo um formato encaixotado, e para navegar nas revistas é preciso dominar um certo cânone, composto de determinados autores e de uma linguagem e palavras-chave específicas”

A pesquisadora, no entanto, vê problemas na empreitada, que ela considera antiética. “É possível fazer o que eles fizeram em praticamente todas as áreas das humanas, pois todo o campo acadêmico é dominado por correntes de poder e linhas de pensamento, as quais vão mudando ao longo do tempo. Sempre foi assim.”

Dessa maneira, na visão de Pinheiro-Machado, ao buscarem apontar especificamente os vieses políticos dos estudos de minorias, os autores da fraude agem com uma intenção política, “uma coisa meio escola sem partido, que parece querer estigmatizar essa área de estudos”.

Tatiana Vargas, professora da Universidade La Salle, no Rio Grande do Sul, também critica o modo como o experimento foi conduzido. “Em três dos estudos eles constroem argumentos a partir de dados inventados. Isso é um problema grave do desenho metodológico do experimento, pois o trabalho dos revisores de periódicos, essencialmente, é apontar inconsistências, não identificar a validade ou não dos dados, ou julgar se uma ideia é maluca ou não.”

Segundo Vargas, uma revista científica aceitar um artigo cuja ideia parece absurda não prova nada. “Se pensarmos de maneira histórica, no desenvolvimento da ciência nos últimos 500 anos, muitas das ideias que hoje são plenamente aceitas foram consideradas absurdas quando propostas”.

Na visão da pesquisadora o debate sobre o rigor e o tipo de conhecimento produzido nas humanas é importante, mas há formas muito mais produtivas e legítimas de avançar a discussão. 

“É possível fazer debates abertos em eventos, promover uma discussão com artigos e réplicas, existem dossiês de revistas acadêmicas dedicados a temas específicos etc. Do jeito que foi feito, parece que a intenção era desmoralizar um campo específico e quem trabalha nele”, diz.

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