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O problema de saúde que pode matar até 10 milhões em 2050 se o mundo não agir

Em 2014, estimou-se que a resistência aos antibióticos causava 700 mil mortes a cada ano

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José Antonio Escudero
BBC News Brasil

Pasteur disse que a sorte só favorece as mentes preparadas (le hasard ne favorise que les esprits préparés).

Talvez seja por isso que quando, ao voltar das férias, Alexander Fleming descobriu que um fungo havia contaminado seu cultivo de estafilococos, ele não se conformou simplesmente.

Em vez de jogá-los no lixo, ele observou que, perto do fungo, as colônias de estafilococos haviam morrido.

Essa observação levou à descoberta da penicilina, que deu início à era dos antibióticos.

E posso dizer que aqueles que vivem nesta era são privilegiados na história da nossa espécie.

Os antibióticos são substâncias com a extraordinária capacidade de matar bactérias sem fazer mal ao paciente infectado.

São provavelmente, junto com as vacinas, um dos avanços científicos mais importantes da medicina.

Será que as bactérias podem voltar a ser a principal causa de morte da humanidade?
Será que as bactérias podem voltar a ser a principal causa de morte da humanidade? - Christoph Burgstedt/Science Photo Library/Getty

As bactérias podem voltar a ser a principal causa de morte da humanidade

Antes da era dos antibióticos, as infecções bacterianas eram a principal causa de morte no planeta.

É por isso que doenças como a peste, tuberculose, lepra ou cólera fazem parte da nossa história.

Isso pareceu ter chegado ao fim quando os antibióticos entraram em cena.

Mas não era tão simples. O primeiro a avisar foi o próprio Fleming.

Em 1945, em seu discurso de ganhador do Prêmio Nobel, ele alertou que o uso indevido dessas moléculas poderia selecionar bactérias resistentes.

No entanto, durante as primeiras décadas da era dos antibióticos, uma infinidade de novas moléculas foi encontrada, e os tratamentos funcionaram sem problemas.

Por isso, os antibióticos foram usados ​​de maneira despreocupada e em grandes quantidades.

Hoje as coisas mudaram muito. Há décadas não encontramos novos antibióticos, e as bactérias multirresistentes (que resistem a várias famílias de antibióticos diferentes) são o pão nosso de cada dia nos hospitais.

Na verdade, em 2014, estimou-se que a resistência aos antibióticos causava 700 mil mortes a cada ano e que esse número aumentaria para 10 milhões de mortes por ano até 2050.

Se não conseguirmos frear a resistência, as bactérias serão novamente a principal causa de morte da humanidade, e também se cumprirá a profecia de Louis Pasteur de que os micróbios terão a última palavra (Messieurs, c'est les microbes qui auront le dernier mot).

Capacidade de evolução das bactérias foi subestimada
Capacidade de evolução das bactérias foi subestimada - Rodolfo Parulan Jr/Getty Images

O erro de subestimar as bactérias

Como é que não conseguimos prever o aparecimento da multirresistência e a perda de eficácia dos nossos tratamentos?

Bem, fundamentalmente, porque subestimamos a capacidade de evolução das bactérias.

Longe do modelo simples de mutação e seleção que acreditávamos no início do século 20 reger o surgimento das resistências, as bactérias possuem várias estratégias muito mais poderosas para superar situações adversas.

Uma delas é a transferência horizontal de genes, que faz com que bactérias de diferentes espécies troquem DNA que pode ser útil para elas.

Isso conecta qualquer bactéria que enfrenta uma ameaça (como, por exemplo, aquelas dos hospitais quando tratadas com antibióticos) com soluções que se originaram em outros micro-organismos de qualquer outra parte do planeta.

A outra estratégia que não fomos capazes de prever é a existência de um acelerador evolutivo em bactérias chamado integron.

O integron é uma plataforma genética que permite às bactérias capturar genes que fornecem novas funções, agindo como memórias que armazenam funções úteis para a bactéria.

Um dos elementos chave para o integron é que os genes que foram úteis em um dado momento, mas já não são mais, se expressam muito pouco. Em outras palavras, representam um baixo gasto de energia para a bactéria.

Isso é fundamental porque uma das razões pelas quais acreditávamos que as bactérias nunca seriam multirresistentes é que pensávamos que a resistência implicaria um custo energético alto. O integron resolve isso expressando pouco os genes que não o interessam.

Mas esta situação não é estática: se a bactéria é atacada por antibióticos, o integron é ativado e reorganiza seus genes para encontrar o gene de resistência ao antibiótico que agora vai matá-la.

Em suma, o integron é como uma memória bacteriana que permite aprender novas funções, reduzindo o gasto energético quando essas funções não são utilizadas e lembrando delas quando voltam a ser necessárias.

Isso nos levou a postular a teoria de que o integron proporciona à bactéria adaptação sob demanda.

O integron em ação

Em nosso último trabalho, pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e da Universidade Complutense de Madri, na Espanha, puderam ver o integron em ação e confirmar essa teoria.

Para isso, construímos dois integrons quase idênticos na bactéria patogênica Pseudomonas aeruginosa (uma bactéria que causa infecções respiratórias).

Ambos integrons possuem três genes de resistência na mesma ordem, de modo que o último gene não confere resistência à gentamicina porque se expressa pouco (mas se o colocássemos na primeira posição do integron, esse gene proporcionaria resistência).

A única diferença entre os dois integrons é que a integrase não funciona em um deles. A integrase é justamente a proteína responsável por capturar e reorganizar os genes do integron.

Usando duas bactérias idênticas, exceto pelo gene da integrase — em uma o integron funciona, e na outra não —, é possível comparar a capacidade de desenvolver resistência proporcionada por um integron.

Para fazer isso, forçamos em laboratório várias populações dessas duas bactérias a crescer em concentrações cada vez maiores desse antibiótico.

Assim, podemos avaliar sua capacidade adaptativa medindo o número de populações que sobrevivem e são extintas quando a concentração do antibiótico aumenta.

Além disso, sequenciamos os genomas das populações em concentrações baixas de antibióticos e em concentrações muito elevadas.

O que nossos experimentos demonstram claramente é que, quando o integron funciona, permite a sobrevivência de mais populações em altas concentrações de antibiótico do que quando ele não funciona.

O sequenciamento mostrou que, no início dessa corrida evolutiva, o integron reorganiza aleatoriamente seus genes de resistência, gerando variabilidade genética muito rápido. E a seleção pelo antibiótico pode atuar sobre esta variabilidade.

Isso é fundamental em concentrações mais altas, nas quais encontramos exclusivamente bactérias que moveram o gene de resistência à gentamicina para a primeira posição do integron e, assim, conseguiram aumentar sua resistência.

No futuro, nossa pesquisa ajudará a desenvolver intervenções que diminuam a resistência e nos ajudem a conter esta pandemia silenciosa.

Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado aqui sob uma licença Creative Commons

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