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Criticar magnatas no espaço por desperdício de dinheiro, ameaça ambiental ou escapismo não faz sentido

Fígado decide que bilionários no espaço é algo ruim, e o cérebro que se vire para explicar

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São Paulo

Lendo, vendo e ouvindo muito do que foi dito sobre os voos de Jeff Bezos e Richard Branson, trago agora os três estágios de desenvolvimento do nascente voo espacial privado.

1) Esses bilionários só querem aparecer e torrar dinheiro em frivolidades.

2) Todas essas pessoas que vão ao espaço são ricas, grande coisa que quintuplicou o acesso.

3) Essas elites não suportam ver pobre andando de espaçonave mesmo.

A referência é a frase de Arthur C. Clarke, segundo a qual toda ideia revolucionária evoca três estágios sucessivos de reação, resumíveis por “é completamente impossível”, “é possível, mas não vale a pena” e “sempre disse que era uma boa ideia”.

No caso dos voos espaciais privados, estamos na primeira etapa. E isso é ainda mais verdadeiro se o assunto é bilionários em atos de autopromoção. O fígado decide que é errado, e o cérebro que se vire para explicar por quê.

Aí a gente ouve que é um desperdício de dinheiro, que é uma ameaça ambiental ou escapismo. O mais honesto dos argumentos talvez seja o de que o momento é que é ruim.

Nada disso faz sentido. Vamos lá, um a um.

Desperdício de dinheiro. Não sei quanto a você, mas acho importante gerar empregos para centenas de profissionais que trabalham nesses empreendimentos. Às vezes sinto que os críticos imaginam o cara colocando 1 bilhão de dólares dentro da nave, acendendo o foguete e mandando tudo para o espaço.

O bilionário americano Jeff Bezos (de chapéu) e os outros três tripulantes do voo da Blue Origin - Reuters

Preocupação ambiental. Boa tentativa. Mas alguém checou o que é usado para propelir o foguete desenvolvido pela Blue Origin, a empresa do Jeff Bezos? Hidrogênio e oxigênio líquidos. Na combustão, eles deixam como subproduto água. H2O.

Ah, mas vapor d'água é gás-estufa. É, mas se você usa água para produzir, por eletrólise, hidrogênio e oxigênio para o foguete, a soma no ambiente é zero. O que você põe de volta é o que você tira. Ah, mas eletrólise precisa de eletricidade, que pode não vir de uma fonte limpa. Verdade, mas aí não é problema do foguete, é um problema da nossa tomada de cada dia.

É verdade que nem todos os veículos são tão limpinhos. A nave da Virgin Galactic queima um polímero com gás do riso que deixa poluentes nitrosos na atmosfera e emite CO2. Os atuais foguetes da SpaceX usam querosene, e a próxima geração usará metano, em ambos os casos emitindo CO2.

O segredo não é vilanizar a atividade, mas regulamentar e cobrar soluções para carbono neutro. Por sinal, essas empresas já estão preocupadas com isso. A Virgin Galactic diz que a pegada de carbono de cada passageiro seu é a mesma de alguém na classe executiva de um voo transatlântico. E a Blue Origin destaca que o foguete dela é ainda menos poluente. Se acharmos que isso não basta por ora, temos de estar preparados para colocar toda a frota global de aviões no chão a partir de agora.

Próximo item: escapismo. Ao que parece, ainda não concluímos a revolução copernicana, iniciada no século 16. Não é só que a Terra não seja o umbigo do Universo. É que a Terra é apenas mais um lugar. Especialíssimo, mas só um lugar. E, nessa visão, não há escapismo; há expansão da atividade humana.

A comparação usual é com as Grandes Navegações, em que viagens por ambientes hostis levaram a novos mundos. Há um certo asco com elas, pelo subjugo europeu. Ok, esqueça-as. Mas não se esqueça de que os povos "nativos" da América e da Oceania nunca foram realmente nativos. Eles são descendentes de exploradores antigos, que cruzaram o estreito de Behring ou promoveram navegações por ilhas polinésias. Isso foi escapismo? Só no sentido de busca por novos espaços e oportunidades, não como fuga da realidade.

O mesmo se aplica ao atual avanço espacial. Ninguém está com a ideia de destruir e abandonar a Terra, consumindo todos os seus recursos, e aí se mudar para outro planeta. Isso seria, além de incrivelmente estúpido, impraticável.

O plano, em vez disso, é expandir o domínio humano e, com isso, de quebra, salvar a Terra. Que tal viabilizar a ocupação do espaço para levar nossas indústrias pesadas e mineração a outros lugares, deixando nosso planeta como o santuário ambiental que merece ser? A ideia é do Jeff Bezos, apresentando publicamente sua visão para a Blue Origin, em maio de 2019.

Talvez soe como ficção científica. E certamente continuará a ser, se o voo espacial continuar estupidamente caro, usar veículos descartáveis (a regra praticamente até agora) e for infrequente. Quebrar o velho paradigma é a premissa de todos esses empreendimentos.

Resta o debate sobre quão oportunos eles são, em meio à pandemia. A Blue Origin foi fundada em 2000. A SpaceX, em 2002. A Virgin Galactic, 2004. O fato de terem amadurecido em meio à pandemia para os primeiros voos tripulados é incidental e refuta a hipótese de que se trate de uma vaidade passageira de magnatas excêntricos que não sabem onde gastar seu dinheiro.

Fosse só vontade de curtir uma egotrip no espaço, todos já teriam comprado uma passagem com os russos, gastando uma fração ridícula do que investiram e queimando muito mais querosene num foguete projetado nos anos 1950. Em vez disso, decidiram tentar abrir as fronteiras do espaço para a humanidade. No dia em que reclamarem que as elites não gostam de ver pobre andando de espaçonave, a missão estará cumprida.

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