Orçamento para pesquisa pode ser usado no sucateamento de caminhões

MP de Bolsonaro preocupa cientistas por abrir brecha no financiamento da ciência

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São Paulo

Uma nova MP (Medida Provisória) editada pelo governo Jair Bolsonaro (PL) preocupa entidades que defendem o financiamento público da ciência. A medida autoriza que valores antes destinados integralmente para pesquisa, desenvolvimento e inovação sejam utilizados no desmonte e sucateamento de veículos pesados com mais de 30 anos, como caminhões.

"Esses recursos apoiam projetos em áreas como tecnologias digitais, captura e utilização de carbono, o que é muito importante para descarbonização, e desenvolvimento de novas energias, como as renováveis", afirma Luiz Davidovich, presidente da ABC (Academia Brasileira de Ciências).

O presidente Bolsonaro (PL) junto com Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energias. A mudança da regra pode impactar destino do orçamento de agência que é vinculada a pasta comandada por Albuquerque - Adriano Machado - 21.mar.2022/Reuters

A MP 1.112 foi publicada em 1º de abril e passou a valer a partir daí. Nela, o governo instituiu o Programa de Aumento da Produtividade da Frota Rodoviária no País —chamado de Renovar— e alterou três leis.

Uma das leis modificadas foi a 9.478 de 1997 que regulamenta a política nacional energética e firma que empresas petrolíferas devem destinar até 1% da receita bruta para financiar pesquisas nas temáticas de óleo e gás.

Com a nova MP, no entanto, o governo alterou o texto dessa lei a fim de permitir a utilização do recurso para financiar o sucateamento de veículos pesados.

Embora seja uma verba que é direcionada ao financiamento de pesquisas científicas, o gerenciamento desses recursos não é feito pelo MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações). Na realidade, o orçamento é uma atribuição da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), que é vinculada ao Ministério de Minas e Energia.

A Folha entrou em contato com o Palácio do Planalto para entender por que se optou por essa mudança e os impactos que isso pode gerar no desenvolvimento científico do país. O Palácio encaminhou as dúvidas para o Ministério de Minas e Energia, mas a pasta não respondeu às perguntas até a publicação desta reportagem.

Para Davidovich, a nova medida pode significar um problema no crescimento do país. "[As pesquisas financiadas] são de temas muito importante para o desenvolvimento econômico e para o protagonismo internacional do país, mas também para o meio ambiente. Quando se fala em captura e utilização de carbono e novas energias menos poluentes, está se falando em proteger o meio ambiente", diz.

Segundo a MP de Bolsonaro, as novas regras são válidas até 2027, porém os recursos de anos anteriores que não foram utilizados para pesquisa podem ser alocados na renovação da frota de veículos. "Se fosse só neste ano, já prejudicaria o futuro sustentável do Brasil. Até 2027, piora mais ainda", diz Davidovich.

O principal problema é que a nova possibilidade de uso do orçamento se difere do seu propósito inicial já que não tem mais impacto direto no financiamento de projetos de inovação. "Nossa posição é que é muito positivo reformar a frota de veículos pesados do Brasil, mas não pode ser feito com recursos destinados à pesquisa porque você está matando a galinha dos ovos de ouro", diz o presidente da ABC, fazendo referência também aos cortes sofridos na ciência nos últimos anos.

Essa visão que desaprova a medida, no entanto, não é adotada por setores ligados a indústria de automotores.

O vice-presidente da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), Marco Saltini, afirmou em um evento da entidade que o Renovar "desempenhará um papel significativo no âmbito social, permitindo a caminhoneiros autônomos a oportunidade de trocar seu veículo com ganhos de produtividade".

Luiz Carlos Moraes, o presidente da associação, também tem uma opinião positiva da medida. "Esse decreto, mais que uma vitória para o setor automotivo, é uma conquista para os caminhoneiros e para toda a sociedade", disse no mesmo evento.

Para os críticos, o fato de Bolsonaro deixar que esse orçamento seja direcionado para setores ligados aos caminhoneiros têm interesses políticos, já que esse público seria um dos beneficiários diretos por terem seus veículos retirados de circulação para passar por processo de sucateamento.

Conforme nota da Anfavea, o proprietário de um veículo pesado com mais de 30 anos poderá entregá-lo e "receber o valor de mercado, mais o da sucata".

"Essa medida tem um propósito [com fins na eleição] porque o presidente quer solidificar uma base eleitoral entre os caminhoneiros", afirma Davidovich.

Em uma nota, diversas entidades científicas, entre as quais a ABC e a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), afirmam que o recurso originado da lei 9.478 financiou a construção de 150 laboratórios em todo o Brasil. Além disso, o orçamento proporcionou mais de 200 parcerias com universidades e institutos de pesquisa.

"O recurso é distribuído através de chamadas para universidades. Essas instituições preparam projetos e eles são julgados por uma comissão em termos de mérito", afirma Davidovich. De acordo com a ANP, também existe a possibilidade de a pesquisa ocorrer na própria empresa petrolífera ou em outras empresas brasileiras.

Como a decisão que abre brechas para o redirecionamento desse orçamento foi tomada por meio de uma medida provisória, é necessária que ela seja votada pelo Congresso Nacional para se tornar uma Lei.

"O que queremos é que a MP não seja aprovada pelo Congresso porque vai prejudicar o Brasil por muito tempo. Ela afeta o núcleo do desenvolvimento de um país, que é ciência e tecnologia", afirma Davidovich.

Outra saída para reverter a situação é por meio de emendas que os congressistas propõem assim que uma MP é editada pelo mandatário. No caso dessa medida 1.112, houve a proposta de uma emenda feita pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) para suprimir os dois parágrafos que admitem o uso do recurso para fins de sucateamento.

"Nós estamos batalhando para que [a emenda seja aprovada ou que a MP não se torne uma lei]", conclui Davidovich.

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