Discussão sobre túmulo de Tutancâmon não morre

Egiptólogo inglês defende teoria de que havia salas escondidas atrás das paredes norte e oeste do túmulo

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Franz Lidz
The New York Times

Mais de três milênios depois que Tutancâmon foi enterrado no sul do Egito, e um século depois que sua tumba foi descoberta, os egiptólogos ainda discutem para quem a câmara foi construída e o que há atrás de seus muros, se houver. O debate tornou-se um passatempo global.

No centro da confusão está o entusiasta do confronto Nicholas Reeves, 66, que divide uma casa perto de Oxford, na Inglaterra, com um gato sem nome. Em julho de 2015, Reeves, ex-curador do Museu Britânico em Londres e do Museu Metropolitano de Arte em Nova York, apresentou a tentadora teoria de que havia salas escondidas atrás das paredes norte e oeste do túmulo cheio de tesouros de Tutancâmon, também conhecido como Rei Tut.

Durante muito tempo se supôs que a pequena câmara funerária, construída há 3.300 anos e conhecida pelos especialistas como KV62, foi originalmente concebida como uma tumba particular para o sucessor de Tutancâmon, Ay, até que Tutancâmon morreu prematuramente aos 19 anos. Reeves propôs que a tumba era, na verdade, apenas uma antecâmara de um sepulcro maior da madrasta e antecessora de Tutancâmon, Nefertiti. Além do mais, argumentou Reeves, atrás da parede norte havia um corredor que poderia levar aos aposentos funerários inexplorados de Nefertiti, e talvez à própria rainha.

Nicholas Reeves (terceiro a partir da direita) avalia documentos dentro da tumba do rei Tutancâmon
Nicholas Reeves (terceiro a partir da direita) avalia documentos dentro da tumba do rei Tutancâmon; ele acredita que há outras salas atrás das paredes do túmulo - Yumiko Ueno/NYT

O governo egípcio autorizou pesquisas usando radar de penetração no solo, capaz de detectar e escanear cavidades subterrâneas. Em entrevista coletiva no Cairo em março de 2016, Mamdouh Eldamaty, então ministro das Antiguidades do Egito, mostrou os resultados preliminares de varreduras de radar que revelaram anomalias por trás das paredes decoradas nos lados norte e oeste do túmulo, sugerindo a presença de dois espaços vazios e materiais orgânicos ou objetos metálicos.

Com muita fanfarra, ele anunciou que havia uma chance de "aproximadamente 90%" de que algo —"outra câmara, outra tumba"— estivesse esperando além da KV62. (Reeves disse: "Houve pressão constante da imprensa por probabilidades. Minha própria resposta foi 50-50 —o radar revelará que há mais na tumba de Tutancâmon do que vemos atualmente, ou não".)

No entanto, depois de dois anos e duas pesquisas com radar, um novo ministro de Antiguidades declarou que não havia portas bloqueadas nem salas escondidas no interior da tumba. Os resultados minuciosos da varredura final não foram liberados para análise independente. No entanto, o anúncio levou a revista National Geographic a cancelar o financiamento para o projeto de Reeves, e um proeminente egiptólogo a dizer: "Não devemos seguir alucinações".

Zahi Hawass, ex-autoridade de antiguidades do Egito e autor de "Rei Tutancâmon: Os Tesouros da Tumba", disse: "Discordo completamente dessa teoria. Não há como no antigo Egito qualquer rei bloquear o túmulo de outra pessoa. Isso iria completamente contra todas as suas crenças. É impossível!" (Reeves respondeu apontando que todo rei sucessor era responsável por fechar a tumba de seu antecessor, como o mítico Hórus enterrou seu pai, Osíris. "Isso é demonstrado até pelo que vemos atualmente na parede norte da câmara funerária, rotulada como Ay enterrando Tutancâmon", disse Reeves.)

Kara Cooney, professora de arte e arquitetura egípcia na Universidade da Califórnia em Los Angeles, observou a tensão no campo acadêmico.

"O trabalho de Nick se baseia em evidências e é cuidadosamente pesquisado", disse ela. "Mas poucos egiptólogos dirão isso abertamente, porque todos têm medo de perder o acesso a túmulos e concessões de escavação. Ou são apenas idiotas."

Apesar do contratempo, Reeves seguiu em frente. Em "The Complete Tutankhamon: 100 Years of Discovery" [Tutancâmon completo: cem anos de descobertas], uma edição recém-revisada de seu livro de 1990 a ser publicada em janeiro próximo, ele se baseia em dados fornecidos por imagens térmicas, varredura a laser, mapas de crescimento de mofo e análise de inscrições para sustentar sua erudição ferozmente contestada. A nova evidência provocativa reforçou sua crença de que Tutancâmon foi enterrado às pressas no corredor de entrada da tumba de Nefertiti.

"Muito do que Tutancâmon levou para o túmulo não tinha nada a ver com ele", disse Reeves, que falou por vídeo de seu escritório em casa. Ele afirmou que o Rei Tut havia herdado um conjunto de luxuosos equipamentos funerários que foram reaproveitados para acompanhá-lo na vida após a morte, incluindo sua famosa máscara mortuária de ouro.

Esquema de pirâmide

Reeves realizou pesquisas diretamente na tumba em várias ocasiões ao longo dos anos. Ele chegou à sua teoria sobre Tutancâmon em 2014, depois de examinar fotos coloridas em alta resolução da tumba, que foram publicadas online pela Factum Arte, empresa com sede em Madri, na Espanha, e Bolonha, na Itália, especializada em gravação e replicação de arte. As imagens mostravam linhas sob as superfícies rebocadas das paredes pintadas, sugerindo portas desconhecidas. Ele especulou que uma porta —no lado oeste— se abria para um depósito da era Tutancâmon, e que outra, alinhada com os dois lados da câmara de entrada, dava para um corredor que seguia ao longo do mesmo eixo em forma e orientação, lembrando um corredor mais extenso da tumba da rainha.

"Eu vi desde o início, pela face da parede norte, que a tumba maior só poderia pertencer a Nefertiti", disse Reeves. "Também sugeri, com base em evidências de outros lugares, que a câmara de armazenamento percebida a oeste da câmara funerária poderia ter sido adaptada em um cômodo funerário para outros membros desaparecidos da família real de Amarna."

Para apoiar sua reavaliação radical, Reeves indicou um par de cartuchos —formas ovais ou oblongas contendo um grupo de hieróglifos— e um curioso erro de ortografia pintado na parede norte da tumba. A figura abaixo do primeiro cartucho é nomeada como o sucessor faraônico de Tutancâmon, Ay, e é mostrada oficiando o enterro do jovem rei na cerimônia de "abertura da boca", um ritual fúnebre para restaurar os sentidos do falecido —a capacidade de falar, tocar, ver, cheirar e ouvir. A chave, disse Reeves, é que ambos os cartuchos de Ay mostram evidências claras de que foram alterados —os nomes de nascimento e de trono de Tutancâmon.

Um casal de turistas observa sarcófago do faraó Tutancâmon no Museu do Cairo, no Egito
Turistas observam sarcófago do faraó Tutancâmon no Museu do Cairo, no Egito - Aladin Abdel Naby - 30.nov.10/Reuters

Reeves sugeriu que os cartuchos originalmente mostravam Tut enterrando seu antecessor e que os cartuchos —e, portanto, o túmulo— foram colocados em novo uso.

"Se você inspecionar atentamente o cartucho do nome de nascimento, verá traços claros e subjacentes de uma folha de junco", disse ele num e-mail. "Não por acaso, este hieróglifo é o primeiro caractere do componente divino do nome de Tutancâmon, '-amun', em todos os escritos padrão."

Sob o nome do trono de Ay pode ser discernida uma escrita variante rara do nome de trono de Tutancâmon, "Nebkheperure", empregando três escaravelhos. Esta é uma variante cuja adaptação fornece a única explicação viável para a versão estranhamente errada, com três escaravelhos, do nome de trono Ay "Kheperkheperure" que está lá, disse Reeves.

Ele deduziu que a cena originalmente não retratava Ay presidindo o enterro de Tutancâmon, mas Tutancâmon presidindo o enterro de Nefertiti. Há dois argumentos visuais, disse ele. O primeiro é o "queixo duplo arredondado, infantil" da figura de Ay, característica ausente de qualquer imagem atualmente identificada com ele, implicando que a pintura original do rei deve ter sido do jovem e gorducho Tutancâmon. A segunda são os contornos faciais do mumificado —até agora presumido como Tutancâmon—, cujos lábios, pescoço estreito e ponte nasal distinta são uma "combinação perfeita" com o perfil do busto de calcário pintado de Nefertiti exposto no Neues Museum em Berlim.

"Não haveria razão para incluir uma representação do enterro deste antecessor na tumba do próprio Tutancâmon", disse Reeves. "De fato, a presença desta cena identifica o túmulo de Tutancâmon como o local de sepultamento daquela antecessora, e que foi nos aposentos externos dela que o jovem rei, in extremis, foi enterrado."

Busto da rainha Nefertiti, de 3.400 anos
Busto da rainha Nefertiti, de 3.400 anos - Fabrizio Bensch - 24.jan.11/Reuters

Rita Lucarelli, curadora de egiptologia da Universidade da Califórnia em Berkeley, disse estar acompanhando com interesse as antigas e novas afirmações de Reeves.

"Se ele estiver certo, seria uma descoberta incrível porque a tumba de Nefertiti também estaria intacta", disse ela. "Mesmo que haja uma tumba lá, porém, talvez não seja a de Nefertiti, mas de outro indivíduo relacionado a Tut. Nós simplesmente não podemos saber, a menos que cavemos a rocha."

O problema, disse Lucarelli, é encontrar uma maneira de perfurar a parede norte decorada sem destruí-la.

"É também por isso que outros arqueólogos não simpatizam com essa teoria", disse ela.

Os colegas que discordam de Reeves são uma legião.

"Nick está açoitando um cavalo morto com suas teorias", disse Aidan Dodson, egiptólogo da Universidade de Bristol, no Reino Unido. "Ele não apresentou nenhuma prova clara de que os cartuchos foram alterados, e seus argumentos iconográficos sobre os rostos na parede foram rejeitados por todos os outros egiptólogos que conheço que estão qualificados para dar uma opinião."

A política do patrimônio

Pelo menos parte da reação às ideias de Reeves pode ser atribuída à política do patrimônio. A narrativa de que a tumba de Tutancâmon foi descoberta pelo heroico arqueólogo inglês Howard Carter tem sido abertamente contestada pelos egípcios, que adotaram a descoberta como grito de guerra para acabar com o domínio britânico na década de 1920 e estabelecer uma identidade egípcia moderna. Entre os egiptólogos de hoje, os temas preferidos são a descolonização do campo e relatos mais inclusivos e equitativos de membros egípcios da equipe envolvida nas escavações arqueológicas.

"Claro, alguns no Egito têm uma visão diferente da minha, o que é fácil de entender", disse Reeves. Uma expressão cansada se espalhou por seu rosto. "Tenho certeza de que arqueólogos no Reino Unido olhariam enviesado para algum estrangeiro que desse palpites sobre quem está enterrado na Abadia de Westminster. Mas meu único interesse como egiptólogo acadêmico, minha responsabilidade intelectual, é buscar as evidências e relatar honesta e objetivamente o que eu encontrar."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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