Descrição de chapéu The New York Times

App de identificar espécies diverte e ajuda a criar consensos na internet

iNaturalist é um raro espaço na internet no qual se estabelece um acordo sobre o que constitui a realidade

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Amy Harmon
The New York Times

O que era aquilo? Um verme segmentado? Uma lesma-do-mar? Uma centopeia colonizada por um parasita?

Quando Merav Vonshak quis identificar a bolha gelatinosa que ela havia fotografado flutuando numa poça rasa durante as férias da família, desprezou um site relacionado à vida natural frequentemente assolado por discussões. Ela não deu nenhuma consideração a plataformas de rede social de marcas conhecidas por sarcasmo ou desinformação.

Em vez disso, ela carregou a foto num site chamado iNaturalist, no qual desconhecidos se reúnem para buscar um tipo muito específico de verdade: a classificação científica correta dos seres vivos que eles fotografam na natureza ou no quintal. Até agora, processaram cerca de 90 milhões, com pelo menos um quarto concluído apenas neste ano.

E foi assim nesse caso em que Vonshak, uma ecologista, pensou primeiramente que a fotografia tirada no Parque Nacional Joshua Tree, na Califórnia, em 2016, poderia ser de um aglomerado de ovos de anfíbios.

Borboleta em santuário em Angangueo, no estado mexicano de Michoacán - Raquel Cunha - 3.dez.22/Reuters

Como muitos usuários do iNaturalist, Vonshak, 45, invoca metáforas utópicas não tipicamente associadas às redes sociais para descrever a plataforma.

"Ela me lembra 'Star Trek', sabe? Nossa sociedade como eu gostaria que fosse."

De fato, ao examinar cobras e musgos da lama, muitos dos fiéis iNaturalistas perceberam que talvez estivessem vendo algo muito maior: um modelo de uso da internet que é regido pela cooperação, não pelo combate.

E quando um consenso acabou convergindo para um tipo de samambaia conhecida como trevo-d'água –uma classe diferente de organismo, em um filo diferente, em um reino diferente do palpite dela– a pontada que muitas vezes se pode sentir por estar errado na internet foi eliminada, disse ela, pelo que parecia ser um pequeno triunfo coletivo.

"É como se isso fosse de todos agora", disse Vonshak. "Este organismo em particular, neste local específico, neste ponto específico do tempo."

Crescendo com 'nanoacordos'?

Uma iniciativa sem fins lucrativos da Academia de Ciências da Califórnia e da National Geographic Society, a iNaturalist diz que visa conectar as pessoas à natureza por meio da tecnologia. E as identificações em nível de espécie do site foram citadas em milhares de artigos científicos.

Mas em um momento em que pode parecer que tudo está sujeito a discussão –a causa da inflação, a natureza do gênero, a legitimidade de uma eleição– o iNaturalist também ganhou reconhecimento como um raro lugar na internet onde pessoas com diferentes pontos de vista conseguem forjar um acordo sobre o que constitui a realidade.

Especialmente para os americanos desorientados pela nítida divisão partidária e pela sensação de que oligarcas e algoritmos podem estar distorcendo até mesmo as crenças que consideram suas, há uma atração num aplicativo sobre a natureza que oferece poderosas amostras de entendimento comum.

Mais de 500 mil novos usuários dos Estados Unidos postaram observações no iNaturalist nos últimos dois anos, representando cerca de 40% dos usuários em todo o mundo. O número de observações ultrapassou 120 milhões neste ano.

E alguns estudiosos das redes sociais dizem que seu crescimento traz lições para melhorar a comunicação entre os membros da única espécie sobrevivente do gênero Homo.

"Este é um site em que as pessoas estão tentando, juntas, estabelecer coletivamente o que é verdade", disse Jevin West, cientista de dados da Universidade de Washington que estuda métodos de combate à desinformação nas redes sociais. Ele acrescentou: "Não temos muitos bons exemplos disso".

Este é um site em que as pessoas estão tentando, juntas, estabelecer coletivamente o que é verdade

Jevin West

cientista de dados da Universidade de Washington

As apostas, de acordo com a maioria das medidas, são baixas: raposa vermelha ou raposa cinza? Abelha ou uma das muitas moscas que evoluíram para imitar as abelhas? Urso marrom, urso pardo ou urso preto? Como chamar esse cogumelo marrom em forma de orelha que cresce nas árvores, se as árvores estão na América do Norte?

E o iNaturalist está longe de ser a única comunidade digital que geralmente consegue manter a paz ligando-se a um interesse restrito: Banjo Hangout para fãs de banjo, Front Porch Forum para conectar vizinhos em cidades de Vermont, servidores gigantescos para cada microidentidade.

No entanto, ele se destaca como um site com o objetivo explícito de colaboração e consenso. West disse que passou a acreditar que o que ele chama de "nanoacordos" do iNaturalist pode ser traduzido para tópicos maiores e mais carregados. E, enquanto a aquisição do Twitter por Elon Musk gera uma discussão sobre como criar ambientes online menos divisivos, o iNaturalist é um modelo na cada vez mais cobiçada categoria "parece mais cooperativo", disse Ethan Zuckerman, pesquisador da Universidade de Massachusetts em Amherst, que apresenta o podcast Reimaginando a Internet.

"Talvez esse processo de ajudar alguém e dizer: 'Acho que você pode ter identificado errado, acho que pode ser isso'", disse Zuckerman, seja um treinamento benéfico para ser um participante cívico em 2022, "em vez de 'Seu idiota, saia da internet, cancele sua conta. Não acredito que você pensou que era um falcão de cauda vermelha imaturo'".

Mais ou menos como o Rotary Club

As diretrizes da comunidade do iNaturalist incluem "presuma que as pessoas têm boas intenções", "não justifique identificações com suas credenciais ou comentários desdenhosos" e "você não precisa ter a última palavra". Ken-ichi Ueda, que ajudou a criar o iNaturalist em 2008 e continua a administrá-lo com seu codiretor, Scott Loarie, disse que a personalidade baseada em evidências do site é reforçada pelo fato de que os usuários não podem simplesmente marcar as identificações como incorretas.

Com a ajuda de um algoritmo de visão computacional, os usuários que enviam uma observação geralmente sugerem uma identificação. Outros podem adicionar sua própria indicação nos comentários. Assim que surge uma maioria de dois terços, o registro recebe um "ID comunitário", que pode ser substituído a qualquer momento em que a maioria mude.

Qualquer pessoa pode fazer um comentário desdenhoso, mas pode haver menos incentivo para fazê-lo, já que a única maneira de discordar de forma significativa é adicionar sua própria identificação.

Observadores de pássaros que registraram algumas das quase 11 mil espécies de pássaros do mundo foram atraídos pela natureza abrangente do iNaturalist, no qual também podem enfrentar as cerca de 900 mil espécies nomeadas de insetos, digamos, ou as 377.990 espécies de plantas. Muitos usuários também aderiram no início da pandemia, quando um vírus que provavelmente saltou de um morcego para outros animais selvagens e humanos pode ter levado para casa a interconexão das espécies.

Mas outros aplicativos de telefone, incluindo Merlin para pássaros, PictureThis para plantas e Seek, uma ramificação do iNaturalist, identificam algum subconjunto dos 2 milhões de espécies formalmente reconhecidas no planeta sem necessidade de comunhão humana.

O fato de as pessoas continuarem a usar o iNaturalist, disse Adam Kranz, 32, deve-se ao senso comum de propósito que o faz lembrar do Rotary Club que seus pais frequentavam na cidade rural de Michigan onde ele cresceu.

Um tutor do Teste de Aptidão Escolar que assumiu a missão de corrigir erros de identificação de vespas de carvalho no iNaturalist, Kranz também tem se preocupado com sua própria tendência de ver aqueles de quem discorda politicamente como "você sabe, inimigos moralmente falidos". Mas o iNaturalist "é o lugar onde sinto que interajo com estranhos e trabalho para o bem comum".

Como provavelmente a maioria dos usuários do iNaturalist —a julgar pelas pistas em perfis e fóruns de discussão—, Kranz é politicamente um liberal. Mas em entrevistas vários dos identificadores mais prolíficos do site se descreveram como politicamente conservadores. E os projetos de grupo no site —Polinizadores da Flórida, Salticidas de Oklahoma, Moldes de lama de Nova York— tendem a ultrapassar as divisões habituais do país.

Thomas Everest, 22, um eleitor republicano registrado que é altamente considerado no site como um identificador de moluscos da Califórnia, disse que passou a valorizar a humildade entre os usuários do iNaturalist —mesmo os mais liberais— que decorre de admitir a ignorância na frente de pessoas que você não conhece ou necessariamente confia.

"É como, 'Sim, estou me colocando aí’", disse Everest, um técnico de laboratório em Ithaca, em Nova York. "'Aqui está o meu sapo. Não sei o que é.'"

Nenhuma mistura de mentes em rótulos taxonômicos, disse Sophia Rosenfeld, historiadora da Universidade da Pensilvânia e autora de "Democracy and Truth", provavelmente consertará o que ela chama de verdade "fraturada" da nação.

"Este é um exemplo de pessoas cooperando sobre como chamar algo", disse Rosenfeld. "Não é necessariamente esperançoso para nossa vida política."

Ainda assim, se você clicar em "discussões em tempo real" no iNaturalist e observar os comentários, poderá encontrar alguma esperança na capacidade das pessoas de ter um discurso civilizado —e até gentileza— na internet.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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