Brasileira tem nome excluído de artigo na revista Science

OUTRO LADO: chefe de laboratório diz que pesquisadora teria recusado assinar a licença de publicação

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São Paulo

Para qualquer pesquisador brasileiro, publicar um trabalho na revista Science –um dos mais prestigiosos periódicos acadêmicos do mundo– é sonho difícil de realizar, ainda mais apresentando uma até então insuspeitada quarta membrana envolvendo o cérebro. Para a bióloga santista Anna Xavier, porém, virou pesadelo.

O trabalho saiu na Science em 6 de janeiro, mas não inclui Xavier entre os 12 autores. Após longa disputa com Maiken Nedergaard, chefe do laboratório em que é pesquisadora desde 2016, no Centro de Neurociência Translacional na Universidade de Copenhague, seu nome terminou excluído.

O estudo teve início em 2017, quando a brasileira foi enviada à Universidade de Helsinki para assimilar técnicas laboratoriais e colher amostras relacionadas com vasos linfáticos do cérebro. Discrepâncias entre hipóteses e experimentos deram origem à ideia de que poderia haver uma quarta membrana envolvendo o cérebro, além das três conhecidas (dura-máter, aracnoide e pia-máter).

Xavier, 40, conta que despendeu mais de dois anos em ensaios para determinar e caracterizar a existência de uma membrana mesotelial no sistema nervoso, comparável ao peritônio que reveste o abdome. Trabalhava em colaboração com Kjeld Mollgard, ex-reitor da Universidade de Copenhague com o dobro de sua idade.

Pesquisa descobre nova estrutura no cérebroCrédito: Divulgação/Universidade de Copenhagen
Pesquisa descobriu nova estrutura no cérebro, batizada de slym - Divulgação/Universidade de Copenhague

O estudo foi inicialmente submetido à Nature, concorrente da Science. Terminou rejeitado com base em objeções e críticas levantadas por especialistas revisores. Nedergaard sugeriu então outros ensaios para determinar a função da camada.

"Eram experimentos bem extenuantes", contou a pós-doutoranda à Folha. "Com a pressão pós-pandemia, em março de 2021 desenvolvi sintomas de estresse e obtive licença médica de duas semanas."

Na volta, a pressão da chefe aumentou, e a bióloga tirou outra licença de três meses. O acordo era que trabalharia em casa, no retorno. Outros pesquisadores do grupo ficaram responsáveis pelos ensaios, inclusive o também brasileiro Leo Myiakoshi, do mesmo centro em Copenhague.

Em outubro, Xavier engravidou e, em janeiro de 2022, obteve licença-maternidade. Nessa altura já havia discussões sobre quem deveria ser incluído no rol de autores e em qual ordem (o primeiro nome é por convenção o principal). Xavier defendia que só ela e Mollgard partilhassem a primazia.

Em março a brasileira soube que o artigo fora submetido à Science sem mencioná-la. Levou o caso ao sindicato e às redes sociais. Conta que lhe foi então oferecido repartir a primeira autoria com mais três pesquisadores (inclusive Myiakoshi), totalizando cinco nomes, o que ela recusou por considerar que o expediente não daria crédito adequado à contribuição mais destacada dela e do ex-reitor.

Pesquisa descobre nova estrutura no cérebroCrédito: Divulgação/Universidade de Copenhagen
Slym está localizada pouco abaixo dos ossos do crânio - Divulgação/Universidade de Copenhague

A pendência chegou a uma espécie de ouvidora da universidade, que promoveu reuniões tentando um acordo. Segundo Xavier, Nedergard passou a exigir uma série de comprovações de que ela tinha de fato produzido dados e análises que três anos antes tinham fundamentado o achado.

Como a brasileira se recusava a assinar como primeira autora na companhia de outros quatro, o artigo saiu na Science sem seu nome. Ela decidiu tornar o caso público, e no dia 20 passado a publicação Forskeforum publicou reportagem de Lasse Hojsgaard sobre o episódio (outro relato saiu no boletim da universidade).

"A minha opinião é que ela [Xavier] ter sido totalmente excluída do artigo é um absurdo", disse à Folha Myiakoshi, um dos três nomes incluídos como primeiros autores. "Porém, acho que a Anna poderia ter sido mais compreensiva e flexível, a ponto de aceitar dividir a coautoria com outras pessoas."

Xavier está fazendo um relatório de queixa formal para o comitê de práticas científicas da universidade. Em consulta com advogados, foi informada de que esses processos podem se estender por até dois anos, mas afirma que vai em frente, mesmo com uma primeira autoria não sendo mais de utilidade para ela.

Após a experiência traumática, a bióloga doutorada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desistiu da ciência acadêmica, onde a primeira autoria de artigos pesa muito no currículo. Aceita fazer pesquisa em empresas, ou trabalhar com educação e comunicação científica, mas de universidade não quer mais saber.

Seu contrato com a Universidade de Copenhague e o visto associado terminam em abril. Ela terá então seis meses para encontrar outro emprego e, nesse meio tempo, pretende obter permissão para permanecer no país por motivo familiar (é mãe do dinamarquês Marvin, de dez meses).

"Os últimos dois anos foram extenuantes", queixa-se. Ela considera que o caso contribuirá para fazer progredir o movimento de jovens pesquisadores na Dinamarca contra o autoritarismo de supervisores, que já motiva debates no Parlamento sobre como acelerar processos similares ao seu.

"Agora há uma janela de oportunidade para que essas coisas mudem e não sejam recorrentes."

OUTRO LADO

A chefe do laboratório alega que houve uma votação anônima e que só uma pessoa apoiou a lista defendida pela brasileira (Myiakoshi informou ter sido dele o voto favorável). Dez outras teriam votado pela relação que Nedergaard considera mais justa. A brasileira teria recusado assinar a licença de publicação da Science.

"Nenhum dado de Anna foi usado. Ofereceu-se a autoria a ela porque fizera parte do estudo inicial, mas ela não aceitava que dez outros jovens investigadores geraram dados que tornaram possível publicar o artigo."

Nedergaard afirma que a pressão sentida por Xavier partia da própria brasileira, não de alguém do grupo. Diz que só pedia ajuda para localizar dados e materiais, coisas que podiam ser resolvidas em ligações telefônicas curtas.

"Anna esteve ausente por quase dois anos. Pergunte a ela por que não apresentou um relatório [à universidade]. Ela foi tratada como uma integrante respeitada do grupo, e ninguém apoia suas queixas."

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