Mosquito transgênico contra dengue é vendido no Brasil em meio a imbróglio judicial

Decisão na Justiça barrou regulação por parte da Anvisa; fabricante diz ter parecer favorável

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São Paulo

Um mosquito Aedes aegypti geneticamente modificado para controle de doenças como a dengue é objeto de um imbróglio judicial. A decisão da Justiça autoriza o produto, mas a Anvisa, uma das partes envolvidas no processo, recorreu da decisão e aguarda novo julgamento na segunda instância.

O mosquito modificado é o carro-chefe da Oxitec, empresa britânica com filial no Brasil. Dois genes foram escolhidos para serem alterados na versão do mosquito da fabricante.

O primeiro desses é o tTAV. No estado normal, o gene produz uma pequena quantidade de uma proteína. Mas uma produção em larga escala dessa substância causada pela alteração genética leva as fêmeas à morte. "As fêmeas super produzem essa proteína e, na vida larval, elas colapsam", resume Luciana Medeiros, coordenadora de operações de campo dos programas de saúde na Oxitec e doutora em biologia funcional e molecular.

Caixas do Aedes do Bem instaladas na rodoviária do Tietê. Decisão judicial autorizou produto depois de uma ação movida pela fabricante contra a Anvisa
Caixas do Aedes do Bem instaladas na rodoviária do Tietê, na zona norte de São Paulo. Decisão judicial autorizou produto depois de uma ação movida pela fabricante contra a Anvisa - Rubens Cavallari/Folhapress

E o objetivo da alteração é exatamente esse: que as fêmeas morram pela modificação, porque somente elas picam humanos e transmitem doenças, além de suprimir a população de insetos. A segunda alteração é de fluorescência. A mudança foi feita basicamente para rastrear o mosquito quando já lançado em campo para fins de pesquisa.

Chamado comercialmente de Aedes do Bem, as caixas do produto são comercializadas em duas versões: uma menor, ao custo médio de R$ 249, com a possibilidade de ser encomendada pela internet por qualquer pessoa que mora no estado de São Paulo ou comprada em lojas parceiras. A outra, de tamanho maior, é exclusiva para empresas e governos.

Com a caixa em mãos, a pessoa adiciona água e, após alguns dias, os mosquitos machos transgênicos sairão para o ambiente. O objetivo é que eles acasalem com as fêmeas selvagens.

Os descendentes serão todos machos, considerando que a nova geração contará com a alteração que é fatal às fêmeas. Sendo assim, espera-se que o número de fêmeas diminuam no ambiente, causando também a queda na transmissão de doenças como dengue.

Esse processo acaba em até dez gerações subsequentes de mosquitos, porque os descendentes compartilham o material genético da fêmea selvagem, que não têm a modificação.

Como funciona o mosquito transgênico

  1. Modificação genética é feita no DNA do mosquito

  2. Ovos alterados são postos em caixas que são comercializadas

  3. Água é adicionada nessas caixas pelo usuário

  4. Depois de 10 a 15 dias, mosquitos machos saem das caixas

  5. Eles acasalam com fêmeas selvagens

  6. Os descendentes são somente machos, que não picam e não transmitem a doença

  7. Os machos mantêm a característica de não gerar fêmeas por algumas gerações

A Oxitec fez estudos em cidades brasileiras, como Jacobina, na Bahia, e Indaiatuba, em São Paulo, para mensurar a eficácia da tecnologia. Também mantém parceria com empresas, como a Socicam, administradora do Terminal Rodoviário Tietê, na zona norte paulistana, onde 15 caixas do mosquito modificado foram espalhadas.

Os dados dos estudos foram utilizados na análise que atestou a biossegurança dos mosquitos. Mesmo assim, o produto é objeto de críticas.

José Maria Gusman, professor da Uniara (Universidade de Araraquara), foi um dos técnicos que avaliaram a primeira versão do inseto, que já foi descontinuada pela Oxitec.

Na opinião dele, era preciso uma maior quantidade de estudos antes da liberação da tecnologia. Um dos pontos de preocupação para o docente é a tetraciclina, que funciona como um antídoto para as fêmeas transgênicas.

Ao ter contato com essa substância, essa fêmea não morre na fase larval, o que poderia causar um efeito contrário no ambiente: ao invés de diminuir o número de mosquitos, aumentaria.

Gusman ressalta que a tetraciclina é utilizada na produção de rações. Então, em certos locais, as fêmeas transgênicas poderiam se manter vivas.

Medeiros diz, porém, que a Oxitec efetuou levantamentos e observou que não há quantidade suficiente de tetraciclina no ambiente para fazer com que as fêmeas transgênicas se mantenham vivas.

O engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, colaborador da Articulação Nacional de Agroecologia, é outro que tem ressalvas ao mosquito modificado.

Ele também foi um dos especialistas que avaliaram a tecnologia e aponta que o volume de mosquitos modificados no ambiente precisaria ser muito alto para, possivelmente, aparentar um efeito positivo.

"Seria necessário uma quantidade exorbitante [de mosquitos transgênicos] para funcionar em um determinado momento, porque vai haver uma migração permanente de mosquitos selvagens de outras áreas para esse local."

O ponto é igualmente rebatido por Medeiros. Ela explica que, durante os anos de pesquisa, conclui-se que é necessário ter no mínimo cinco mosquitos modificados para cada um selvagem a fim de manter a supressão dos insetos. A proporção seria alcançada considerando a quantidade de insetos expelidos nas caixas comercializadas pela empresa.

Processo na Justiça

O produto desenvolvido pela Oxitec é classificado como um organismo geneticamente modificado —conhecido pela sigla OGM. O trâmite para liberação desse tipo de produto requer uma autorização da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), que foi dada para as duas versões de mosquitos da fabricante.

Por outro lado, o registro comercial e a fiscalização de um OGM é dever de outra entidade que varia a depender do tipo de organismo. Uma dessas é a Anvisa, que "pretendia regulamentar o registro desse tipo de tecnologia como saneante tendo em vista a ação desinfetante".

Duas outras autarquias responsáveis por registro e fiscalização de OGMs, o Ibama e o Ministério da Agricultura, disseram à reportagem que não realizaram o registro e fiscalização do mosquito modificado por ele ser da alçada da Anvisa.

Em reportagem publicada em 2018 nesta Folha, é relatado que a Oxitec aguardava o registro da agência para a primeira versão do mosquito modificado após o parecer favorável da CTNBio, mas a companhia entrou com um processo contra a Anvisa.

A tese era de que a agência não tinha a competência de regular o produto, e a decisão da Justiça foi favorável a suspender os trâmites do produto na Anvisa.

O ponto foi criticado pelo então diretor-presidente da Anvisa na época, Jarbas Barbosa. Ele afirmou à reportagem de 2018 que a agência "não pode dar um registro baseado na avaliação de qualquer outro órgão".

A entidade recorreu e, na decisão mais recente, datada de 2019, o juiz avaliou que a Anvisa não tem capacidade de regular o mosquito. Novamente, a agência recorreu da decisão e aguarda julgamento na segunda instância.

Todo o processo foi sobre a primeira geração do mosquito, que se encontra descontinuada. No entanto, a Anvisa disse que o entendimento da Justiça também contempla o produto que agora é comercializado.

Em nota enviada à Folha, a Oxitec afirmou que o parecer favorável da CTNBio é suficiente para a comercialização do mosquito transgênico. "A regularização do Aedes do Bem ocorreu completa e formalmente, nos termos da lei e através da única autoridade pública brasileira responsável pela liberação de OGM, a CTNBio."

Para a empresa, a decisão da Justiça é um indicativo de que a autorização da CTNBio já é suficiente para liberação do produto. Na sentença, o juiz considerou a Anvisa incompetente para regular ou liberar comercialmente o mosquito e mencionou que o produto, conforme parecer da comissão de biossegurança, não traz riscos à saúde humana ou ao meio ambiente.

Outra parte ouvida pela reportagem foi a própria CTNBio. Em nota, o MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), órgão ao qual está vinculado a comissão, esclareceu que "a CTNBio não é responsável pela autorização ou pela fiscalização do produto. Esses procedimentos cabem à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Ainda comunicamos que o produto pode ser comercializado de acordo com as regras definidas pela agência".

Outro ponto mencionado pela Oxitec é que o Ministério Público seria uma agência governamental que "pode (como o faz) acompanhar, monitorar e fiscalizar" o Aedes do Bem. A Folha entrou em contato com o Ministério Público Federal e o do Estado de São Paulo. O primeiro disse não interveio no processo movido pela Oxitec contra a Anvisa porque a "ação não se amolda à atuação constitucional do Ministério Público". O segundo, não respondeu à reportagem.

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