Descrição de chapéu The New York Times

Bisturi, fórceps e broca óssea revelam medicina moderna na Roma antiga

Kit descoberto na Hungria é uma das mais extensas coleções de instrumentos médicos romanos do primeiro século

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Franz Lidz
The New York Times

Os médicos geralmente são tidos em alta consideração hoje, mas os romanos do século 1º eram céticos, até mesmo desdenhosos, em relação aos médicos, muitos dos quais tratavam doenças que não compreendiam. Os poetas, especialmente, ridicularizavam os cirurgiões por serem gananciosos, por se aproveitarem sexualmente dos pacientes e, acima de tudo, por sua incompetência.

Em sua "História Natural", Plínio, o Velho, um almirante e estudioso que morreu em 79 d.C. enquanto tentava resgatar aldeões desesperados que fugiam da erupção do Monte Vesúvio, dedicou-se a criticar a profissão médica "em nome do Senado e do povo romano e dos 600 anos de Roma". Seus honorários eram excessivos, seus remédios, duvidosos, e suas brigas, insuportáveis. "Os médicos ganham experiência por nossa conta e risco e conduzem seus experimentos por meio de nossas mortes", escreveu ele. Epitáfios em algumas lápides romanas diziam: "Um bando de médicos me matou".

Algumas das ferramentas recentemente escavadas, que incluíam pinças, uma cureta e três bisturis de liga de cobre com lâminas de aço removíveis e incrustados com prata em estilo romano
Algumas das ferramentas recentemente escavadas, que incluíam pinças, uma cureta e três bisturis de liga de cobre com lâminas de aço removíveis e incrustados com prata em estilo romano - Rusznák Gábor/Elte via The New York Times

Os remédios medicinais melhoraram desde então —não há mais caracóis esmagados, carne de doninha curada com sal ou cinzas de cabeças de cães cremadas—, mas os instrumentos cirúrgicos mudaram surpreendentemente pouco. Bisturis, agulhas, pinças, sondas, ganchos, cinzéis e brocas fazem parte do kit de ferramentas médicas padrão de hoje tanto quanto na era imperial de Roma.

Arqueólogos na Hungria recentemente desenterraram um conjunto raro e intrigante desses aparelhos. Os itens foram encontrados numa necrópole próxima de Jaszbereny, a cerca de 56 km de Budapeste, em dois baús de madeira, e incluíam uma pinça para extrair dentes; uma cureta, para misturar, medir e aplicar medicamentos; e três bisturis de liga de cobre munidos de lâminas de aço destacáveis e incrustados de prata em estilo romano. Ao lado estavam os restos mortais de um homem que, supõe-se, seria um cidadão romano.

O local, aparentemente intocado por 2.000 anos, também continha um pilão que, a julgar pelas marcas de abrasão e resíduos de drogas, provavelmente era usado para moer ervas medicinais. O mais incomum era uma alavanca de osso, para colocar as fraturas de volta no lugar, e o cabo do que parece ter sido uma broca, para trepanar o crânio e extrair armamento impactado no osso.

O "instrumentarium", adequado para a realização de operações complexas, oferece uma percepção das práticas médicas avançadas dos romanos do século 1o e de quão longe os médicos teriam viajado para oferecer cuidados. "Nos tempos antigos, essas eram ferramentas comparativamente sofisticadas, feitas com os melhores materiais", disse Tivadar Vida, diretor do Instituto de Arqueologia da Universidade Eotvos Lorand (ELTE), em Budapeste, e líder da escavação.

O local da escavação, numa necrópole próxima de Jaszbereny, a cerca de 56 km de Budapeste, na Hungria
O local da escavação, numa necrópole próxima de Jaszbereny, a cerca de 56 km de Budapeste, na Hungria - Rusznák Gábor/Elte via The New York Times

Dois milênios atrás, Jaszbereny e o condado ao redor faziam parte do Barbaricum, região que ficava além das fronteiras do império romano e era uma barreira contra possíveis ameaças externas. "Como um indivíduo tão bem equipado pode morrer tão longe de Roma, no meio do Barbaricum?", refletiu Leventu Samu, pesquisador do ELTE e membro da equipe de escavação. "Ele estava lá para curar uma figura local prestigiosa, ou talvez estivesse acompanhando um movimento militar das legiões romanas?"

Conjuntos semelhantes foram encontrados na maior parte do império; o maior e mais variado foi descoberto em 1989 nas ruínas da casa de um médico do século 3o em Rimini, na Itália. Mas a nova descoberta é descrita como uma das mais extensas coleções conhecidas de instrumentos médicos romanos do primeiro século.

Até agora, pensava-se que o mais antigo fosse um tesouro de objetos desenterrados em 1997 num cemitério em Colchester, na Inglaterra, que datava de cerca de 70 d.C., bem no início da ocupação romana da Grã-Bretanha. O conjunto mais famoso apareceu nos anos 1770 na chamada Casa do Cirurgião de Pompeia, que foi enterrada sob uma camada de cinzas e pedra-pomes (lava) durante a erupção do Monte Vesúvio.

Licença desnecessária

Os romanos tinham grandes esperanças nos especialistas médicos. Em "De Medicina" ou "Sobre a Medicina", o enciclopedista romano do século 1o Aulus Cornelius Celsus ponderou que "um cirurgião deve ser jovem ou, de qualquer forma, mais próximo da juventude do que da idade; com mão forte e firme que nunca trema, e pronto para usar tanto a mão esquerda quanto a direita; com visão nítida e clara". O cirurgião deve ser destemido e empático, mas indiferente aos gritos de dor do paciente; seu maior desejo deve ser curar o paciente.

A maioria desses destemidos médicos romanos eram gregos, ou pelo menos falantes da língua grega. Muitos eram libertos ou mesmo escravos, o que pode explicar sua baixa posição social. O homem enterrado na necrópole húngara tinha 50 ou 60 anos quando morreu; não está claro se ele realmente era um médico, disseram os pesquisadores, mas provavelmente não era um morador do local.

Ossos do homem do primeiro século com os quais foram encontrados os instrumentos cirúrgicos utilizados no Império Romano
Ossos do homem do primeiro século com os quais foram encontrados os instrumentos cirúrgicos utilizados no Império Romano - Rusznák Gábor/ELTE via The New York Times

"Estudar medicina só era possível, na época, em um grande centro urbano do império", disse Samu. Os médicos eram peripatéticos e as tradições médicas variavam de acordo com o território. "Escritores médicos antigos, como Galeno, aconselhavam que os médicos viajassem para aprender sobre doenças comuns em certas áreas", disse Patty Baker, ex-chefe de arqueologia e estudos clássicos na Universidade de Kent, na Inglaterra.

Candidatos a cirurgiões eram encorajados a aprender com médicos reconhecidos, estudar em grandes bibliotecas e ouvir palestras em lugares distantes, como Atenas e Alexandria. Para ter experiência direta no tratamento de ferimentos de combate, os médicos frequentemente se internavam nas escolas do exército e de gladiadores, o que pode explicar a presença de ferramentas médicas no Barbaricum.

"Não havia conselhos de licenciamento nem requisitos formais para o ingresso na profissão", disse Lawrence Bliquez, arqueólogo emérito da Universidade de Washington. "Qualquer um podia se chamar de médico."

Segundas opiniões são bem-vindas

A sepultura carregada de instrumentos foi descoberta no ano passado em um sítio onde relíquias da Idade do Cobre (4.500 a.C. a 3.500 a.C.) e do período ávaro (560 a 790 d.C.) foram encontradas na superfície. Uma sondagem posterior com um magnetômetro identificou uma necrópole dos ávaros, povo nômade que sucedeu os hunos de Átila. Entre as fileiras de túmulos, os pesquisadores descobriram o de um homem, revelando um crânio, ossos da perna e, ao pé do corpo, baús de instrumentos metálicos. "O fato de o falecido ter sido enterrado com seu equipamento talvez seja um sinal de respeito", disse Samu.

Baker disse que frequentemente alertava seus alunos sobre a interpretação de artefatos antigos e pedia que considerassem explicações alternativas. E se, ela propôs, as ferramentas médicas foram enterradas com o chamado médico porque ele era tão ruim em sua prática que a família quis se livrar de tudo associado a suas habilidades médicas precárias? "Foi uma piada", disse Baker. "Mas o objetivo era fazer os alunos pensarem sobre como tiramos conclusões rápidas sobre objetos que encontramos em locais de enterro."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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