Descrição de chapéu The New York Times

John B. Goodenough, criador da bateria de íons de lítio e prêmio Nobel, morre aos 100

Cientista desenvolveu uma bateria que povoou o planeta com smartphones, laptops e tablets, desfibriladores cardíacos e veículos elétricos

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Robert D. McFadden
The New York Times

John B. Goodenough, o cientista que dividiu o Prêmio Nobel de Química de 2019 por seu papel crucial no desenvolvimento da revolucionária bateria de íons de lítio —o conjunto de energia recarregável onipresente nos dispositivos eletrônicos sem fio de hoje e veículos elétricos e híbridos–, morreu no domingo (25) num centro de vida assistida em Austin, no Texas (sul dos Estados Unidos). Tinha 100 anos.

A Universidade do Texas em Austin, onde Goodenough foi professor de engenharia, anunciou sua morte.

Até ser escolhido para o Prêmio Nobel, Goodenough era relativamente desconhecido fora dos círculos científicos e acadêmicos e dos titãs comerciais que exploravam seu trabalho. Ele realizou sua descoberta de laboratório em 1980 na Universidade de Oxford (Reino Unido), onde criou uma bateria que povoou o planeta com smartphones, laptops e tablets, dispositivos médicos vitais como desfibriladores cardíacos e veículos elétricos limpos e silenciosos, incluindo muitos Teslas, que podem ser usados em viagens longas, diminuem o impacto das mudanças climáticas e poderão um dia substituir carros e caminhões movidos a gasolina.

John Goodenough em Boston em 2017, dois anos antes de se tornar o ganhador mais velho do Prêmio Nobel, aos 97 anos
John Goodenough em Boston em 2017, dois anos antes de se tornar o ganhador mais velho do Prêmio Nobel, aos 97 anos - Kayana Szymczak - 6.abr.17/The New York Times

Assim como a maioria dos avanços tecnológicos modernos, a bateria de íons de lítio recarregável, poderosa e leve é um produto de descobertas incrementais de cientistas, técnicos de laboratório e interesses comerciais ao longo de décadas. Mas para as pessoas que conhecem a história da bateria a contribuição de Goodenough é considerada o elo crucial em seu desenvolvimento, um eixo entre a química, a física e a engenharia em escala molecular.

Em 2019, quando tinha 97 anos e ainda fazia pesquisas na Universidade do Texas, Goodenough tornou-se o ganhador do Prêmio Nobel mais velho da história, quando a Real Academia Sueca de Ciências anunciou que ele dividiria o prêmio de US$ 900 mil com outros dois cientistas que deram grandes contribuições para o desenvolvimento da bateria: M. Stanley Whittingham, professor da Universidade Binghamton, Universidade Estadual de Nova York, e Akira Yoshino, membro honorário da Asahi Kasei Corp. em Tóquio e professor da Universidade Meijo em Nagoya, no Japão.

Goodenough não recebeu royalties por seu trabalho na bateria, apenas seu salário durante seis décadas como cientista e professor no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, em Oxford e na Universidade do Texas. Dando pouca importância ao dinheiro, ele cedeu a maior parte de seus direitos, compartilhou patentes com colegas e doou os estipêndios que acompanhavam seus prêmios para pesquisas e bolsas de estudo.

Uma presença amistosa desde 1986 no campus de Austin, onde surpreendeu os colegas por permanecer ativo e inventivo até mais de 90 anos, ele trabalhou mais recentemente em uma superbateria que, segundo disse, poderia algum dia armazenar e transportar energia eólica, solar e nuclear, transformando a rede elétrica nacional e talvez revolucionando o lugar dos carros elétricos na vida da classe média, com autonomia de percurso ilimitada e recarga fácil, em minutos.

Um episcopaliano devoto, Goodenough mantinha uma tapeçaria da "Última Ceia" na parede de seu laboratório. A representação dos apóstolos em uma conversa fervorosa, como cientistas discutindo uma teoria, o fazia lembrar, segundo disse, do poder divino que lhe abriu portas em uma vida que começou com poucas promessas.

Ele era, como escreveu em seu livro de memórias, "Witness to Grace" (testemunha da Graça - 2008), o filho indesejado de um agnóstico professor de religião na Universidade de Yale e uma mãe com quem ele nunca se relacionou. Sem amigos, exceto por três irmãos, um cachorro da família e uma empregada, ele cresceu sozinho e disléxico numa casa emocionalmente distante. Foi enviado para um internato particular aos 12 anos e raramente ouvia falar de seus pais.

Com paciência, aconselhamento e intensa luta pelo aperfeiçoamento, Goodenough superou suas dificuldades de leitura. Estudou latim e grego em Groton e se especializou em matemática em Yale, meteorologia nas Forças Aéreas do Exército durante a Segunda Guerra Mundial e física com Clarence Zener, Edward Teller e Enrico Fermi na Universidade de Chicago, onde obteve um doutorado em 1952.

No Laboratório Lincoln do MIT nas décadas de 1950 e 1960, ele participou de equipes que ajudaram a definir as bases da memória de acesso aleatório (RAM) em computadores e desenvolveram planos para o primeiro sistema de defesa aérea dos EUA. Em 1976, quando o financiamento federal para seu trabalho no MIT terminou, ele mudou-se para Oxford para ensinar e dirigir um laboratório de química, onde iniciou sua pesquisa sobre baterias.

O mundo moderno há muito procurava baterias que fossem seguras, confiáveis, baratas e potentes. A primeira bateria de verdade foi inventada em 1800 por Alessandro Volta, que empilhou discos de cobre e zinco e os ligou com um pano embebido em água salgada. Com fios conectados a discos nas duas extremidades, a bateria produzia uma corrente estável. As primeiras baterias de carros eram principalmente de chumbo-ácido e volumosas, capazes de acionar ignições e acessórios como luzes, mas até anos recentes não eram potentes o bastante para acionar motores. Os produtos eletrônicos de consumo usavam baterias de zinco-carbono ou níquel-cádmio.

Assim que Goodenough chegou a Oxford, a Exxon patenteou um projeto de Whittingham, um químico britânico empregado pela empresa, da primeira bateria recarregável usando lítio como eletrodo negativo e dissulfeto de titânio, até então não usado em baterias, como eletrodo positivo. Parecia um avanço, porque os íons de lítio, o metal mais leve, produziam alta voltagem e funcionavam à temperatura ambiente. A bateria de Whittingham foi um avanço, mas provou ser impraticável. Se sobrecarregada ou recarregada repetidamente, ela pegava fogo ou explodia.

Buscando aperfeiçoar o projeto, Goodenough também usou íons de lítio. Mas sua ideia, obtida em experimentos com dois assistentes de pós-doutorado, foi criar o cátodo com camadas de lítio e óxido de cobalto, que criavam bolsos para os íons de lítio. O arranjo também produziu uma voltagem mais alta e tornou a bateria muito menos volátil. Ele teve êxito após quatro anos.

"Foi o primeiro cátodo de íons de lítio que, instalado numa bateria, tinha a capacidade de alimentar dispositivos compactos e relativamente grandes, qualidade que o tornaria muito superior a qualquer coisa no mercado", escreveu Steve LeVine em "The Powerhouse: Inside the Invention of a Battery to Save the World" (A usina de força: a invenção de uma bateria para salvar o mundo - 2015).

"Isso resultaria", acrescentou ele, "numa bateria com duas a três vezes a energia de qualquer outra bateria recarregável em temperatura ambiente e, portanto, poderia ser muito menor e ter um desempenho igual ou melhor."

No início houve pouco interesse por sua descoberta. Oxford se recusou a patenteá-la, e Goodenough cedeu os direitos para uma organização britânica de pesquisa de energia atômica. Enquanto isso, cientistas no Japão e na Suíça descobriram que o lítio revestido com carbono grafítico melhorava o ânodo.

A contribuição de Yoshino, segundo a Academia Sueca, foi eliminar o lítio puro da bateria, usando apenas íons de lítio, que são mais seguros. Ele criou uma bateria de íons de lítio comercialmente viável para a Asahi Kasei Corp., que começou a vender a tecnologia em 1991.

No mesmo ano, a Sony, reconhecendo o potencial comercial da tecnologia emergente, combinou o cátodo de Goodenough com um ânodo de carbono para produzir a primeira bateria de íons de lítio recarregável e segura para o mercado. As aplicações proliferaram. Os laboratórios encontraram novas maneiras de diminuir o tamanho das baterias, juntá-las e aumentar a produção de energia. Uma revolução em dispositivos móveis sem fio e aplicações veiculares explodiu.

"A estrutura original do cátodo de óxido de lítio-cobalto de Goodenough ainda é usada nas baterias de íons de lítio encontradas em quase todos os dispositivos eletrônicos pessoais, como smartphones e tablets", escreveu Helen Gregg na revista The University of Chicago em 2016. "Quando ele estava mexendo com óxidos, ainda em Oxford, Goodenough não tinha ideia do impacto que sua bateria teria."

John Bannister Goodenough nasceu em Jena, na Alemanha, em 25 de julho de 1922, o segundo dos quatro filhos de Erwin e Helen (Lewis) Goodenough. Seu pai estava terminando estudos de pós-graduação na Universidade de Oxford, e a família voltou para os Estados Unidos quando John era criança e se estabeleceu em Woodbridge, em Connecticut, depois que seu pai ingressou no corpo docente de Yale para ensinar religião comparada.

Em 1951, casou-se com Irene Wiseman. Eles não tiveram filhos. Ela morreu em 2016. Ele deixa uma meia-irmã, Ursula W. Goodenough, e um meio-irmão, Daniel A. Goodenough, ambos professores eméritos de biologia.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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