Nobel de Química de 2022 vai para construção de moléculas com um 'click'

Barry Sharples é premiado pela 2ª vez com um Nobel de Química e Carolyn Bertozzi é a 8ª mulher a receber a láurea; eles dividirão o prêmio com Morten Meldal

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São Paulo

O Prêmio Nobel de Química de 2022 ficou com Carolyn Bertozzi, Morten Meldal e Barry Sharples, pelo desenvolvimento de uma engenhosa ferramenta para construção de moléculas. Os cientistas são responsáveis por estudos sobre as chamadas química "click" e química bio-ortogonal.

É o segundo Nobel de Química de Barry Sharples, que tinha recebido outra láurea em 2001 pelo seu trabalho com reações de catálise quiral. Ele se junta a Marie Curie (laureada em Física, em 1903, e Química, 1911), Linus Pauling (Química em 1954 e o Nobel da Paz em 1962) e a Frederick Sanger (1958, 1980), outros cientistas premiados mais de uma vez.

Bertozzi é a 8ª mulher a ser premiado com a láurea de química.

Telão ao fundo; na frente da tela, trio de pessoas sentadas
No telão, os ganhadores do Nobel de Química de 2022; a partir da esq.: Carolyn Bertozzi, Morten Meldal e Barry Sharpless - Christine Olsson/Reuters

O nome dado à química "click" reflete a sua simplicidade de utilização: uma forma de construir moléculas a partir de reações químicas rápidas e conseguindo, ao mesmo tempo, evitar subprodutos não desejados. Uma boa de imaginar esse tipo de química é pensar em fechos químicos, ou seja, ligações --daí o "click"--que permitem juntar blocos de partículas e, com isso, criar moléculas mais e mais complexas. Sharples começou a estudar a área há cerca de 20 anos.

De forma geral, essa forma de química poderia ser comparada a móveis simples que as pessoas compram para montar em casa. Todas as peças e ferramentas estão disponíveis e o manual de instruções é facilmente seguido por qualquer um —quase sempre, pelo menos.

Parece simples, mas o problema é identificar fechos químicos que cumpram a função de modo preciso. E é aí que entra a contribuição de Bertozzi, Meldal e mais um pouco do trabalho de Sharples.

Com a habilidade de controle refinado na construção de molécula, abre-se a porta para o desenvolvimento de drogas, sequenciamento de DNA e novos materiais, por exemplo.

E os usos não param por aí. A partir da química "click" é possível colocar "sinalizadores" em moléculas biológicas —sem prejudicá-las, obviamente—, o que é importante para que pesquisadores consigam acompanhar o funcionamento de mecanismos do corpo humano e até mesmo atacar alvos específicos, como tumores.

Os ganhadores foram anunciados na manhã desta quarta-feira (5), na Academia Real Sueca de Ciências, em Estocolmo, na Suécia. Os pesquisadores premiados dividirão o prêmio de 10 milhões de coroas suecas, o equivalente a mais de US$ 900 mil ou cerca de R$ 4,7 milhões, no câmbio atual. Além disso, cada um deles recebe uma medalha, com a face de Nobel, e um diploma.

Joia da coroa

Após o início dos trabalhos com a química "click", Meldal, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, e Sharples, do Instituto de Pesquisa Scripps, nos EUA, cada um independentemente do outro e quase ao mesmo tempo, conseguiram achar a atual joia da coroa desse tipo de reação: a cicloadição azido/alcino catalisada por cobre.

Meldal, especificamente, descobriu o poder dessa reação quase por acidente. Em um dia comum, ao fazer uma reação rotineiras com uso de íons de cobre, um dos componentes reagiu com o lado errado de uma outra molécula e resultou em uma produto chamado de triazol.

O triazol tem o formato de anel e é muito estável e não reativo. Até aquele momento em que Meldal e Sharples conseguiram dominar a técnica, as tentativas de construção de triazol (a partir da junção de alquinos e do ânion azida) não tinham obtido êxito. O segredo estava no controle do processo pelo íon de cobre.

Ou seja, os pesquisadores agora tinham em mãos a ferramenta necessária para aplicações diversas da ideia de reações "click".

O manual de instrução para a montagem é relativamente simples —para um químico, ao menos. Para juntar duas moléculas basta, em teoria, colocar em uma delas um alquino (também chamado de alcino) e na outra uma azida. Junte ainda íons de cobre e..."click". A ligação está feita.

Homem aponta para lousa
Em foto de 2001 Barry Sharpless faz apresentação a repórteres e colegas após ganhar o seu primeiro Prêmio Nobel - Andrew Silk - 10.out.2001/AFP

Bilho

A aplicação da química "click" em operações com células vivas não era ideal, considerando a presença dos íons de cobre, então algumas possibilidades semelhantes começaram a ser estudadas.

Bertozzi, mais ou menos ao mesmo tempo em que Meldal e Sharples , estava trabalhando com glicanos, carboidratos complexos que usualmente ficam na superfície de proteínas e de células. Eles são importantes pelo papel que desempenham em processos biológicos, como quando vírus infectam células.

É do trabalho de Bertozzi que aparece a ideia da química bio-ortogonal, com a produção de reações que podem ocorrer dentro de organismos vivos, sem afetar o ser vivo e, algo essencial, sem ser afetado pelo espécime em que está.

Bertozzi fez uma molécula em que juntava um açúcar com uma azida, um arranjo que pode ser absorvido e processado por células. O resultado é a expressão, a incorporação da azida no glicano. Para o "click", porém, ainda faltava o alquino, cujo uso, nesse caso, não poderia depender do íon de cobre.

Pesquisando na literatura científica, Bertozzi viu que, se forçasse o alquino a assumir o formato de anel, a reação com a azida aconteceria de forma semelhante ao que acontece na presença dos íons de cobre. A nova forma de "click" estava a caminho.

Ao alquino em forma de anel, é possível adicionar elementos que ajudem a mapear células, por exemplo. A pesquisadora testou a ideia com os glicanos que ela estudava e conseguiu os deixar fluorescentes.

Imagem com células com contorno verde
Imagem de pesquisa feita por Carolyn Bertozzi com uso da química "click" - PNAS

As ideias desenvolvidas por Meldal, Sharples e Bertozzi já são funcionais.

No caso da pesquisadora, por exemplo, os estudos com glicanos na superfície de células tumorais mostrou que essas estruturas aparentemente "protegem" o tumor do nosso sistema imune. A equipe de pesquisa de Bertozzi, então, desenvolveu, a partir das químicas "click" e bio-ortogonal uma droga biológica capaz de frear a ação dos glicanos na superfície de células tumorais. O medicamento já está em testes em pessoas com câncer avançado.

Segundo o químico Jailson Bittencourt de Andrade, vice-presidente da ABC (Academia Brasileira de Ciências), as pesquisas premiadas no Nobel marcam uma nova era. "A química consegue cada vez mais construir moléculas com funções específicas. O uso delas se torna muito mais dirigido", afirma o pesquisador brasileiro.

Tais trabalhos se casam ainda com a busca por menos efeitos colaterais em medicamentos. "Ao invés de você fazer uma sopa de coisas que vai resultar em moléculas-alvo, você pega as partes que quer e vai juntando. Com isso, evita-se partes que não sejam amigáveis ao uso", diz Andrade.

O pesquisador destaca ainda a realidade atual da química, onde é possível, com o conhecimento molecular que temos, simular computacionalmente o comportamentos das moléculas em sistemas mais complexos.

O vice-presidente da ABC relembra, porém, a necessidade de uso ético dos avanços científicos. Mecanismos como os laureados em 2022 também poderiam ser usados para armas químicas, por exemplo.

Como é escolhido o ganhador do Nobel

A premiação do Nobel teve início com a morte do químico sueco Alfred Nobel (1833-1896). Em seu último testamento, em 1895, Nobel registrou que sua fortuna deveria ser destinada para a construção de um prêmio. A família do químico recebeu a ideia com contestação. O primeiro prêmio acabou sendo dado somente em 1901.

Para o trabalho de Nobel, inventor da dinamite e responsável pelo desenvolvimento de borracha e couro sintéticos, a química era a ciência de maior importância. O químico registrou 355 patentes em 63 anos de vida.

O processo de escolha do vencedor da área de química começa no ano anterior à premiação. Em setembro, o Comitê do Nobel de Química manda convites (cerca de 3.000) para a indicação de nomes que merecem a homenagem. As respostas são enviadas até o dia 31 de janeiro.

Podem indicar nomes os membros da Academia Real Sueca de Ciências; membros do Comitê do Nobel de Química e de Física; ganhadores do Nobel de Física e de Química; professores de química em universidades e institutos de tecnologia da Suécia, Dinamarca, Finlândia, Islândia e Noruega, e do Instituto Karolinska, em Estocolmo; professores em cargos semelhantes em pelo menos outras seis (mas normalmente em centenas de) universidades escolhidas pela Academia de Ciências, com o objetivo de assegurar a distribuição adequada pelos continentes e áreas de conhecimento; e outros cientistas que a Academia entenda adequados para receber os convites.

Autoindicações não são aceitas.

Começa então um processo de análise das centenas de nomes apontados, com consulta a especialistas e o desenvolvimento de relatórios, a fim de afunilar a seleção. Finalmente, em outubro, a Academia, por votação majoritária, decide quem receberá o reconhecimento.

Histórico recente do Nobel de Química

No ano passado, o prêmio ficou com Benjamin List, do Instituto Max-Planck, na Alemanha, e com David MacMillan, da Universidade de Princeton, nos EUA. Os cientistas foram laureados pelo desenvolvimento de uma ferramenta engenhosa e poderosa para construção de moléculas orgânicas, conhecida como organocatálise assimétrica.

Em 2020, o Nobel de Química foi 100% feminino, com láureas para Emmanuelle Charpentier, do Instituto Max Planck (Alemanha), e Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA). As pesquisadoras foram importantes para abrir a porta para a possibilidade de reescrever o código da vida com edição genética. Você já deve ter ouvido da técnica usada para isso: Crispr-Cas9.

Somente oito mulheres ganharam o reconhecimento até agora, entre 189 premiados na história.

Já em 2019, o desenvolvimento de baterias de íons de lítio rendeu a John B. Goodenough, M. Stanley Whittingham e Akira Yoshino o Nobel da área.

Por levar a evolução para tubos de ensaio, em 2018, o Nobel de Química ficou com Frances H. Arnold, dos EUA, George P. Smith, também dos EUA, e Gregory P. Winter, do Reino Unido.

Em 2017, pesquisas de criomicroscopia eletrônica, processo pelo qual é possível congelar moléculas em meio a processos bioquímicos —como em uma fotografia da vida—, foram lembradas pelo Nobel. Os laureados foram Jacques Dubochet, da Universidade de Lausanne, Joachim Frank, da Universidade Columbia e Richard Henderson, da Universidade de Cambridge.

Além do prêmio de 2021, pesquisas sobre catálise foram recentemente premiadas. Em 2001, os pesquisadores William S. Knowles, Ryoji Noyori e K. Barry Sharpless foram laureados por estudos sobre reações de catálise relacionadas a moléculas quirais, capazes de produzir produtos especulares, como os citados nas pesquisas vencedoras de 2021.

Entre as pesquisas já premiadas ao longo da história estão ainda a descoberta e o trabalho com os elementos químicos rádio e polônio (Marie Curie, 1911) e a pesquisa sobre ligações químicas (Linus Pauling, 1954).

Agenda do Nobel

Nobel de Literatura - quinta-feira (6)

Nobel da Paz - sexta-feira (7)

Nobel de Economia - segunda-feira (10)

Os anúncios ao vivo dos vencedores podem ser acompanhados no site oficial da premiação e no perfil do YouTube do Nobel.

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