Descrição de chapéu The New York Times

Estudo que diz oferecer a mais antiga evidência de canibalismo é alvo de críticas

Pesquisa analisou fragmento de osso de canela de 1,45 milhão de anos encontrado há 53 anos no norte do Quênia

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Franz Lidz
The New York Times

Todo mundo é rápido para ver um canibal. Os romanos pensavam que os antigos bretões se banqueteavam com carne humana, e os britânicos pensavam o mesmo sobre os irlandeses. Não poucos achados pré-históricos foram atribuídos, sugestivamente, se não com precisão, ao trabalho de antigos canibais. Em 1871, Mark Twain comentou a descoberta dos ossos de um homem primitivo que supostamente havia servido de refeição para seus pares: "Pergunto ao leitor sincero: isso não parece tirar vantagem de um senhor que morreu há 2 milhões de anos?".

No disputado mundo atual da paleoantropologia, as afirmações de canibalismo seguem padrões rígidos de evidência. É por isso que houve muita desconfiança recentemente sobre um estudo publicado na Scientific Reports que afirma que um fragmento de osso de canela de 1,45 milhão de anos —encontrado há 53 anos no norte do Quênia e pouco documentado— é um indício de que nossos ancestrais humanos não apenas abatiam membros de sua própria espécie, mas provavelmente, como disse um comunicado de imprensa, também os devoravam.

O anúncio descreveu a descoberta como a evidência decisiva mais antiga de tal comportamento. "As informações que temos nos dizem que os hominídeos provavelmente comiam outros hominídeos há pelo menos 1,45 milhão de anos", disse Briana Pobiner, paleoantropóloga do Museu Nacional de História Natural do Smithsonian e primeira autora do artigo, no comunicado à imprensa. "Existem inúmeros outros exemplos de espécies na árvore evolucionária humana que consumiam umas às outras para nutrição, mas este fóssil sugere que os parentes de nossa espécie se comiam para sobreviver no passado mais distante do que reconhecíamos."

O fragmento de tíbia de hominídeo com 1,45 milhão de anos recuperado do norte do Quênia, com uma área ampliada mostrando marcas de corte
O fragmento de tíbia de hominídeo com 1,45 milhão de anos recuperado do norte do Quênia, com uma área ampliada mostrando marcas de corte - Jennifer Clark via The New York Times

A descoberta de uma parte da suposta vítima trouxe à tona uma das questões que tiram o sono dos paleoantropólogos: quando marcas em ossos indicam canibalismo? Ou, dito de outra forma, quanta evidência pré-moderna é necessária para provar uma teoria moderna?

Pobiner, uma autoridade em marcas de corte, havia visto o fóssil de meia tíbia seis anos atrás, enquanto examinava ossos de hominídeos guardados no cofre de um museu em Nairóbi. Ela estava inspecionando o fóssil em busca de marcas de mordida quando notou 11 cortes finos, todos angulados na mesma direção e agrupados em torno de um ponto onde um músculo da panturrilha teria se ligado ao osso —o pedaço mais carnudo da parte inferior da perna, disse Pobiner em entrevista.

Ela enviou moldes das cicatrizes para Michael Pante, paleoantropólogo da Colorado State University e autor do estudo, que fez escaneamentos em 3D e comparou o formato das incisões com um banco de dados de 898 marcas de dentes, pisoteamento e carniçaria. A análise indicou que nove das marcas eram consistentes com o tipo de dano causado por ferramentas de pedra. Pobiner disse que a colocação e a orientação dos cortes implicavam que a carne havia sido arrancada do osso. A partir dessas observações, ela extrapolou sua tese de canibalismo.

"Pelo que podemos dizer, este osso da perna de hominídeo está sendo tratado como outros animais, que presumimos que eram comidos com base em muitas marcas de carniçaria neles", disse Pobiner. "Faz mais sentido presumir que estas também foram feitas com o objetivo de comer."

No estudo, Pobiner escreveu que o canibalismo era uma explicação possível para o osso descarnado. Mas suas citações no comunicado à imprensa soaram mais definitivas e, para desgosto dos colegas, inspiraram títulos na imprensa como "Os homens das cavernas se matavam para comer há 1,45 milhão de anos, dizem cientistas".

Um modelo 3D de uma tíbia mostrando duas das numerosas marcas identificadas como marcas de corte
Um modelo 3D de uma tíbia mostrando duas das numerosas marcas identificadas como marcas de corte - Michael Pante via The New York Times

Alguns especialistas elogiaram as descobertas. "Atencioso e perfeitamente afinado", disse James Cole, arqueólogo da Universidade de Brighton (Reino Unido). Outros chamaram o caso de Pobiner de canibalismo pré-histórico exagerado, apenas porque ela não ofereceu nenhuma prova de que a carne havia sido comida. "Se são marcas de carniçaria, não podemos ter certeza sobre o canibalismo", disse Raphaël Hanon, zooarqueólogo da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo (África do Sul).

"É isca para cliques", disse Tim D. White, paleoantropólogo da Universidade da Califórnia em Berkeley, mais conhecido por liderar a equipe que descobriu o Ardipithecus ramidus, um provável ancestral humano de 4,4 milhões de anos. "Mesmo que sejam eventualmente demonstrados como antigos e reais, a simples presença de arranhões ambíguos em um osso fóssil isolado não é evidência suficiente de canibalismo."

Na maioria das vezes, a verificação da prática está aberta a dúvidas. "Arqueólogos e antropólogos físicos se esforçam para tornar seus campos de ciência 'reais', mas quanto mais você recua mais nebulosos ficam os dados", disse Peter Bullock, arqueólogo-chefe aposentado do Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos. "O canibalismo é geralmente a interpretação mais atraente, e eu gastei muita energia dando descontos. Por que não uma vítima de assassinato ou o resultado de um humanoide autista se mutilando? Prove que isso não é possível."

Os estudiosos há muito debatem se devem aceitar o canibalismo rotineiro e habitual na pré-história humana ou negar que ele tenha ocorrido na árvore genealógica humana. "Se você está lutando pela sobrevivência, o que nossos ancestrais faziam todos os dias, qualquer fonte nutricional seria benéfica", disse Pante. A polêmica se intensificou em 1979, quando William Arens, um antropólogo social, argumentou em seu livro "The Man-Eating Myth: Anthropology and Anthropophagy" que quase não havia evidências históricas e etnográficas confiáveis sobre o hábito do canibalismo, exceto em casos isolados de terrível emergência.

Desde então, uma prova clara do canibalismo sistemático entre os hominídeos surgiu no registro fóssil. A confirmação mais antiga foi descoberta em 1994 no local da caverna Gran Dolina, nas montanhas de Atapuerca, na Espanha. Os restos mortais de 11 indivíduos que viveram cerca de 800 mil anos atrás apresentavam claros sinais de terem sido comidos, com ossos exibindo cortes, fraturas onde foram abertos para expor a medula e marcas de dentes humanos.

O espécime do fragmento de osso de Pobiner foi recuperado por Mary Leakey, uma paleoantropóloga britânica, nas terras remotas do deserto a leste do lago Turkana, então chamado de lago Rudolf, sem um contexto arqueológico da fauna que foi observada no momento da descoberta. "Havia outros ossos com marcas de corte?", indagou White. "Havia ferramentas de pedra? Os investigadores tentaram retornar ao local para encontrar a outra ponta da tíbia?" Ele sustentou que esses detalhes são críticos para fornecer inferências precisas sobre eventos passados.

Então, quando marcas num osso indicam canibalismo pré-histórico? "Em um único osso, nunca", disse White. "Demonstrar que os arranhões foram feitos por um hominídeo com uma ferramenta de pedra é um desafio metodológico. O maior desafio é demonstrar que tal evidência tem qualquer coisa a ver com canibalismo."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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