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Guerra nuclear pode acabar com o mundo, mas e se estiver tudo na nossa cabeça?

Especialistas querem aplicar pesquisas em neurociência à tomada de decisões que poderiam levar ao apocalipse

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Sarah Scoles
The New York Times

A guerra nuclear regressou ao campo das conversas à mesa de jantar, e pesa na mente do público mais do que nunca em uma geração.

Não é apenas devido ao grande sucesso do filme "Oppenheimer": desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, as autoridades do país têm feito ameaças nucleares. A Rússia também suspendeu sua participação num tratado de controle de armas nucleares com os Estados Unidos. A Coreia do Norte lançou mísseis de demonstração. Os Estados Unidos, que estão modernizando suas armas nucleares, abateram um balão de vigilância da China, que está aumentando seu arsenal atômico.

"Acredito que a ameaça do uso nuclear hoje seja tão alta quanto sempre foi na era nuclear", disse Joan Rohlfing, presidente e diretora de operações da Iniciativa da Ameaça Nuclear, um influente grupo sem fins lucrativos em Washington, D.C.

Ilustração mostra o cogumelo de uma explosão de bomba atômica formando um cérebro dentro de um contorno no formato de uma cabeça humana
A Iniciativa de Ameaça Nuclear está trabalhando em um projeto para aplicar insights da ciência cognitiva e neurociência à estratégia nuclear e protocolos para que os líderes não se precipitem no Armagedom nuclear - Mirko Ilic - 21.ago.23/NYT

Nesse ambiente, uma crise convencional corre um grande risco de se tornar nuclear. Basta que um líder mundial decida lançar um ataque nuclear. E esse processo de tomada de decisão deve ser mais bem compreendido.

Historicamente, os estudos sobre a tomada de decisões nucleares surgiram da teoria econômica, onde os analistas muitas vezes supõem, de modo irracional, que um "ator racional" está tomando as decisões.

"Todos sabemos que os humanos cometem erros", disse Rohlfing. "Nem sempre temos bom senso. Nós nos comportamos de maneira diferente sob estresse. E há tantos exemplos de falhas humanas ao longo da história. Por que achamos que com a energia nuclear será diferente?"

Mas a crescente compreensão científica do cérebro humano não se traduziu necessariamente em ajustes nos protocolos de lançamento nuclear.

Agora há um estímulo para mudar isso. A organização liderada por Rohlfing, por exemplo, trabalha num projeto para aplicar conhecimentos da ciência cognitiva e da neurociência à estratégia e aos protocolos nucleares —para que os líderes não tropecem e caiam no Armagedom atômico.

Mas encontrar ideias verdadeiramente inovadoras e com respaldo científico para evitar um ataque nuclear acidental ou desnecessário é realmente difícil. O mesmo ocorre com a tarefa de apresentar o trabalho com matizes adequados.

Os especialistas também precisam convencer os formuladores de políticas a aplicar ideias baseadas em pesquisas às práticas nucleares no mundo real.

"Os limites desse discurso estão extraordinariamente bem protegidos", disse Anne I. Harrington, uma acadêmica nuclear da Universidade de Cardiff, no País de Gales, referindo-se à resistência interna que, segundo ela, os membros de governos enfrentaram ao contestar a atual situação nuclear. "Portanto, qualquer pessoa que pense que fará mudanças apenas externamente... acho que isso não acontecerá."

As potências nucleares mundiais têm protocolos diferentes para tomar a grave decisão de usar armas nucleares. Nos Estados Unidos, se não houver uma mudança improvável no equilíbrio entre os poderes de estado, a decisão cabe a uma única pessoa.

"As armas mais devastadoras do arsenal militar dos EUA só podem ser mobilizadas pelo presidente", disse Reja Younis, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington, que também é doutoranda em relações internacionais na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins.

Numa crise envolvendo armas nucleares, disse Younis, o presidente provavelmente se reuniria com o secretário de Defesa, líderes militares e outros assessores. Juntos, eles avaliariam as informações e discutiriam a estratégia, e os assessores apresentariam ao presidente possíveis ações.

"O que pode variar de 'não vamos fazer nada e ver o que acontece' até 'vamos atacar com nuclear em grande escala'", disse Alex Wellerstein, professor do Instituto de Tecnologia Stevens em Nova Jersey e chefe de um projeto de pesquisa chamado "O presidente e a bomba".

No final, porém, apenas o presidente toma a decisão —e ele pode renunciar à orientação dos conselheiros. Um presidente poderia simplesmente apertar o proverbial botão.

"Estas são as armas do presidente", disse Rohlfing.

Antes da vitória eleitoral de Donald Trump em 2016, especialistas e opositores políticos começaram a levantar preocupações sobre conferir a ele o poder de ordenar um ataque nuclear. Esse debate prosseguiu no Congresso durante seu mandato presidencial. Quando Trump deixou o cargo, a então presidente da Câmara, Nancy Pelosi, tinha pedido abertamente ao presidente do Estado-Maior Conjunto que limitasse sua capacidade de disparar armas nucleares.

Foi nesse ambiente que Deborah G. Rosenblum, vice-presidente-executiva da Iniciativa da Ameaça Nuclear, convidou o neurocientista Moran Cerf, atualmente professor da Escola de Administração da Universidade Columbia, para dar uma palestra para a organização em 2018. Ele a intitulou "Seu cérebro sob risco catastrófico". (Hoje, Rosenblum atua no governo Biden como secretário-adjunto de Defesa para programas de defesa nuclear, química e biológica —um departamento que informa o presidente sobre questões nucleares.)

Vestindo camiseta preta e jeans, Cerf apresentou a uma sala de especialistas e pesquisadores o que a ciência do cérebro tinha a dizer sobre temas existencialmente preocupantes, como a guerra nuclear. A visita precedeu uma colaboração entre Cerf e a organização sem fins lucrativos PopTech, cuja conferência Cerf conduz.

Os grupos, com subvenção da Carnegie Corporation de Nova York, trabalham para fornecer ao governo sugestões baseadas na ciência para aperfeiçoar os protocolos de lançamento nuclear. Mudar essas políticas não é impossível, mas exigiria um cenário político específico e adequado.

"Seria necessário ter algum tipo de consenso que viesse não apenas de grupos externos, mas também de membros políticos e militares", disse Harrington. Ela acrescentou: "Você provavelmente também precisa ter o presidente certo, honestamente".

Cerf tem a cadência rápida de um palestrante das TED Talks. Nascido na França e criado em Israel, ele se formou em física, fez mestrado em filosofia, ingressou num laboratório de estudo da consciência na Caltech e depois fez a transição e concluiu o doutorado lá em neurociência.

No percurso, prestou o serviço militar obrigatório em Israel, trabalhou como hacker "do bem", prestou consultoria em filmes e na TV e ganhou uma competição de contação de histórias Moth GrandSlam.

Cerf disse que sua principal crítica ao sistema de início de uma guerra nuclear é que, apesar dos avanços na nossa compreensão do cérebro tão inconstante, o status quo pressupõe de modo geral atores racionais. Na realidade, diz ele, o destino de milhões de pessoas depende da psicologia individual.

Uma das sugestões de Cerf é examinar o cérebro dos presidentes e compreender as particularidades neurológicas da tomada de decisão presidencial. Talvez um comandante-em-chefe funcione melhor de manhã e outro à noite; um é melhor faminto, o outro saciado.

Outras ideias para melhorar os protocolos sobre os quais Cerf falou em público podem geralmente ser rastreadas até a investigação existente sobre tomada de decisões ou questões nucleares.

A principal recomendação do grupo, porém, reflete propostas de outros defensores: exigir que outra pessoa (ou pessoas) aprove um ataque nuclear. Wellerstein, que não participou da pesquisa do grupo, diz que essa pessoa deve ter o poder explícito de dizer não.

"Nossa crença é que o sistema que temos, que depende de um único decisor, que pode ou não estar equipado para tomar essa decisão, é um sistema frágil e muito arriscado", disse Rohlfing.

Outro estudo de Cerf envolve a mudança climática. Ele descobriu que quando se pedia às pessoas que apostassem dinheiro nos resultados climáticos, apostavam que o aquecimento global estava acontecendo e estavam mais preocupadas com seu impacto, apoiavam mais a ação e tinham maior conhecimento de questões relevantes —mesmo que no início fossem céticas. "Você basicamente muda seu próprio cérebro sem que ninguém lhe diga nada", disse Cerf.

Ele acha que os resultados poderiam ser aplicados a cenários nucleares porque seria possível usar apostas para fazer com que as pessoas se preocupassem com o risco nuclear e apoiassem mudanças de políticas. As descobertas também poderiam ser usadas para avaliar o pensamento e as previsões dos assessores do presidente.

Alguns estudiosos da ciência da decisão não concordam com tais extrapolações.

"Passar disso a dar conselhos sobre o destino do mundo... acho que não", disse Baruch Fischhoff, psicólogo que estuda tomada de decisões na Universidade Carnegie Mellon.

Paul Slovic, professor de psicologia da Universidade do Oregon e presidente da organização sem fins lucrativos Decision Research, disse que nenhuma investigação psicológica pode parar no experimento.

"É preciso alternar entre os estudos de laboratório, que são muito restritos e limitados, e olhar pela janela", disse ele.

Qualquer cérebro, mesmo o de um comandante-em-chefe, tem dificuldade com a empatia em grande escala necessária para compreender o que significa disparar uma arma nuclear. "Não conseguimos perceber realmente o que significa matar 30 milhões de pessoas", disse Cerf.

Existe um termo psicológico antigo para isso: entorpecimento psíquico, cunhado por Robert Jay Lifton. Só porque os humanos são inteligentes o suficiente para dominar armas destrutivas, "não significa que sejamos inteligentes o suficiente para manejá-las depois de criadas", disse Slovic, cuja pesquisa ampliou o conceito de entorpecimento psíquico.

Esse efeito é agravado pela dificuldade de prestar a devida atenção a todas as informações importantes. E isso piora com a tendência de tomar uma decisão com base em uma ou algumas variáveis importantes. "Se nos depararmos com escolhas que representem um conflito entre a segurança e o salvamento de vidas estrangeiras distantes, às quais somos insensíveis porque são apenas números, optaremos pela segurança", disse Slovic.

No passado, explicou Wellerstein, os planos de lançamento nuclear se adaptavam às novas circunstâncias, filosofias e tecnologias. E os presidentes mudavam os protocolos devido aos receios que surgiram nos seus momentos históricos: de que os militares lançassem uma bomba nuclear por conta própria, de que o país vivenciasse um Pearl Harbor nuclear ou de que ocorresse um acidente.

Talvez o medo hoje seja de que a psicologia individual governe uma opção que modifique o mundo. Levando isso em conta, vale a pena trabalhar para compreender como os cérebros podem funcionar numa crise nuclear —e como poderiam funcionar melhor.

O que vem depois da ciência —de que forma mudar a política— é complicado, mas não impossível. Os protocolos nucleares podem ter um sentido de permanência, mas são escritos em processadores de texto, não em pedra.

"O sistema atual que temos não caiu do céu totalmente formado", disse Wellerstein.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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