Retratação iminente lança uma sombra sobre um campo da física

Alegações de má conduta estão levando cientistas a questionar o trabalho de Ranga Dias, incluindo sua suposta descoberta de um supercondutor à temperatura ambiente

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Kenneth Chang
The New York Times

Uma importante revista de física está retratando um artigo científico publicado dois anos atrás que descreveu as transformações de um composto químico ao ser espremido entre dois pedaços de diamante.

Uma descoberta tão incomum geralmente não chamaria muita atenção. Sua retratação, tampouco.

Mas um dos líderes dessa pesquisa é Ranga P. Dias, professor dos departamentos de física e engenharia mecânica da Universidade de Rochester, em Nova York. Ele causou repercussão científica muito maior no início deste ano quando anunciou a descoberta de um supercondutor de temperatura ambiente.

Ranga P. Dias, professor de engenharia mecânica e física na Universidade de Rochester, em Nova York
Ranga P. Dias, professor de engenharia mecânica e física na Universidade de Rochester, em Nova York - Lauren Petracca/NYT

Ao mesmo tempo, Dias vem sendo acusado de má conduta em pesquisas. Suas descobertas sobre supercondutores permanecem em boa parte sem confirmação.

O artigo que foi retratado não envolve supercondutividade, mas descreve como um material relativamente comum, sulfeto de manganês, muda seu comportamento de um isolante para um metal e então, submetido a pressão crescente, de volta a isolante.

Uma queixa de que um dos gráficos no artigo parecia suspeito levou a revista, Physical Review Letters, a recrutar especialistas externos para examinarem o texto de mais perto.

A investigação chegou a conclusões inquietantes.

"As conclusões fundamentam de modo convincente as alegações de fabricação ou falsificação de dados", escreveram os editores da revista em email aos autores do artigo em 10 de julho.

O New York Times obteve cópias do email e de três relatórios escritos pelos revisores externos. Os relatórios não foram publicados, mas circularam entre cientistas do campo. A revista Campus Times, da Universidade de Rochester, e a revista Nature divulgaram antes a retratação prevista.

Nenhum dos revisores se convenceu com as explicações dadas pelos autores. Além disso, dados adicionais pedidos pela revista para fundamentar o teor do artigo claramente não corresponderam ao que fora publicado.

Ranga Dias continua a defender o trabalho, mas alguns cientistas consideram que já há evidências claras de má conduta.

"Não resta mais nenhuma negação plausível", disse N. Peter Armitage, professor de física e astronomia na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, e um dos cientistas que tiveram acesso aos relatórios. "Eles apresentaram dados falsificados. Não há ambiguidade alguma."

Nos últimos anos, Ranga Dias e seus colegas publicaram uma série de descobertas espetaculares em importantes revistas científicas.

O anúncio mais recente foi feito em março. Eles descreveram na revista Nature a descoberta de um supercondutor –um material que transmite eletricidade sem perder energia para a resistência elétrica—que funcionava a temperaturas de até 70º Fahrenheit (se bem que também exigisse uma pressão esmagadora de 145 mil libras por polegada quadrada). A maioria dos supercondutores precisa ser esfriada para temperaturas ultrafrias, fato que limita seu uso prático.

Diamante usado em experimento
Experimento de supercondutividade com diamante feito no laboratório chefiado por Ranga Dias - Lauren Petracca - 3.mar.2022/The New York Times

Mas muitos cientistas reagiram com ceticismo, porque um artigo anterior de Dias e seus colegas sobre um supercondutor, também publicado na Nature, já havia sido retratado. Críticos também haviam descoberto que a tese de doutorado de Dias, completada em 2013 na Universidade Washington State, contém trechos plagiados do trabalho de outros cientistas.

Vários dos autores dos dois artigos na Nature também aparecem no artigo da Physical Review Letters sobre sulfeto de manganês. Eles incluem o próprio Ranga Dias; Ashkan Salamat, professor de física na Universidade de Nevada em Las Vegas, e Keith V. Lawler, professor e pesquisador em Nevada.

Em declaração fornecida por seu agente publicitário, Dias disse: "Expressamos nossa decepção com a decisão tomada pelos editores da PRL e apresentamos devidamente nossas respostas sobre as investigações deles relativas à qualidade dos dados no artigo original".

Dias disse na declaração que não ocorreu má conduta científica e que o trabalho não conteve fabricação ou manipulação de dados.

A investigação da Physical Review Letters enfocou uma cifra no artigo que supostamente mostrava resistência elétrica no sulfeto de manganês. Mas curvas muito semelhantes também apareceram na tese de Dias para um material completamente diferente, o seleneto de germânio.

Descritos como os revisores Alfa, Beta, Delta e Gama, os cientistas não foram identificados (Alfa e Beta colaboraram em um relatório conjunto). Quando eles pediram os dados experimentais originais usados para gerar o gráfico, Salamat forneceu uma planilha de números que despertou mais suspeitas.

Todos os revisores notaram que quando plotaram os dados de Salamat em um gráfico, não viram divergências que eram visíveis no gráfico publicado. "Os alegados dados ‘brutos’ parecem ser uma versão adulterada dos dados mostrados" no artigo publicado pela revista, escreveram os revisores Alfa e Beta.

Em seu email, os editores da revista escreveram: "Encaramos essa ausência de correspondência e o que parece ser um esforço intencional de obstruir a investigação como mais uma violação ética".

A revista disse aos autores que podiam oferecer-se para retratrar o artigo voluntariamente e disse que, se eles não o fizessem, ela o retrataria.

Até agora tanto a Universidade de Nevada quanto a Universidade de Rochester vêm elogiando os potenciais avanços que um supercondutor que funcionasse à temperatura ambiente poderia proporcionar.

"Espero que isso obrigue as instituições envolvidas —a Universidade de Rochester e a Universidade de Nevada em Las Vegas— a encarar de frente o que está acontecendo aqui", disse Armitage.

Depois de James J. Hamlin, um professor de física na Universidade da Flórida, ter denunciado as semelhanças entre os gráficos, um dos autores do artigo, Simon A.J. Kimber, disse que reconheceu imediatamente que havia problemas com os dados de resistência.

"Pedi uma retratação menos de 24 horas mais tarde e não participei dos esforços para impedi-la", disse Kimber em email.

Os outros autores, em especial Salamat e Dias, continuaram a defender o artigo, dizendo que sob pressão tanto o sulfeto de manganês quanto o selenito de germânio agem como metais; logo, que não seria surpreendente que ambos os materiais transmitissem eletricidade de modo semelhante.

Os revisores não se convenceram, apontando para divergências menores nas curvas que aparentavam ser erros de medição ou barulho.

"Se você quiser uma analogia", disse um dos revisores, que pediu para continuar anônimo porque os revisores não foram identificados publicamente, "poderia dizer ‘uma atriz loira se parece com qualquer atriz loira. Mas essas divergências lembram mais a pinta na bochecha de Marilyn Monroe.’"

Encontrar outra atriz loira com uma pinta idêntica no mesmo lugar no mesmo lado do rosto seria tão improvável que seria difícil de acreditar. Para esse revisor, a correspondência entre a curva do sulfeto de manganês e a do selenito de germânio é assim.

Enquanto o artigo publicado na Physical Review Letters deve ser retratado, a alegação sobre o supercondutor feita em março permanece no limbo científico.

"O grupo que fez essa alegação fenomenal é um grupo que agora está envolvido em manuseio descuidado ou mesmo fraudulento de dados", disse o revisor que exigiu anonimato para falar. "Isso nos obriga a afixar um aviso gigante de ‘cuidado!’ a esses resultados."

Tradução de Clara Allain

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