Em saga por coral de proveta, lua nova vira momento de caça a sêmen

Pesquisadores tentam desenvolver nova técnica de reprodução para recuperar populações ameaçadas

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São Paulo

Era uma noite de lua nova, em 2019, quando pesquisadores foram atrás de pacotinhos em tanques próximos ao mar brasileiro. Os objetos de atenção eram pacotes de espermatozoides e óvulos recém-liberados por corais-cérebro ameaçados de extinção. Acompanhados com auxílio de lanternas de cabeça, eram capturados e, em seguida, congelados.

Anos depois —e uma pandemia no meio—, filhotes de proveta de coral, provenientes daqueles espermatozoides capturados, nasceram, aumentando a esperança sobre mais um mecanismo para recuperar as sofridas populações de corais mundo afora.

Segundo Leandro Godoy, pesquisador da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) que liderou a empreitada pelo coral de proveta, esse tipo de pesquisa ainda está estágios iniciais.

Dois objetos, parecidos com feijões, que parecem flutuar
Embrião de coral-cérebro (Mussismilia harttii) em desenvolvimento - Nayara Cruz

Para a inseminação, o primeiro passo necessário foi o congelamento de espermatozoides. E aí já começam as dificuldades.

"Ela [a célula] está paralisada no tempo. Ela está viva, mas não tem nenhum tipo de reação química", diz Godoy. "Uma coisa é colocar um pedaço de carne no congelador. Mas manter uma célula viva em nitrogênio líquido, a -196°C, esse é o desafio."

Um dos problemas, segundo o pesquisador, é a grande parcela de água no interior de células, que, ao congelar, forma cristais de gelo que acabam rompendo e matando a célula. Por isso, foram necessários anos para entender a estrutura do espermatozoide do coral-cérebro (Mussismilia harttii) com o qual estava trabalhando (que é quatro vezes menor do que os espermatozoides de corais de outras regiões, como no Havaí e na Austrália).

Para evitar a formação de cristais, os pesquisadores tiveram que ir em busca dos chamados crioprotetores, que, em linhas gerais, ocupam o lugar da água no interior da célula —e são tóxicos, o que exige testes com diferentes tipos de substâncias e dosagens.

Os corais-alvo da pesquisa foram o Mussismilia harttii, endêmico do Brasil e na lista vermelha de animais ameaçados da IUCN (International Union for Conservation of Nature). Além disso, esses corais têm um período curtíssimo de reprodução: noites de lua nova de setembro a novembro —daí a menção do começo do texto.

Cerca de 10 a 15 antes do momento de reprodução, membros do Instituto Coral Vivo mergulhavam na região do Parque Marinho do Recife de Fora, na Bahia, e —com autorização de órgãos competentes— coletavam algumas colônias de corais e as levavam para tanques que mantinham condições adequadas para os animais.

Na natureza, os pacotinhos —que carregam tanto espermatozoides quanto óvulos; a espécie é hermafrodita— citados no começo da reportagem eclodem ao chegar à superfície do oceano, diz Godoy. Para a pesquisa, assim que eles eram liberados pelos corais, os pesquisadores os coletavam em tubinhos, onde eles então iriam eclodir.

Após as coletas e o início dos trabalhos, veio a Covid-19. Os pesquisadores tiveram, basicamente, que interromper o trabalho nos laboratórios da UFRGS, e os espermatozoides ficaram congelados por mais de dois anos por causa da crise sanitária.

Congelar era um desafio e descongelar —com ajuda de um banho-maria— também era, momento no qual também podem se formar cristais de gelo e no qual perdas são esperadas.

Com o processo de descongelamento ideal decifrado, chegou a hora de os pesquisadores finalmente verificarem se conseguiriam fazer a reprodução do Mussismilia harttii com o sêmen congelado.

Em resumo, espermatozoides congelados eram colocados junto a óvulos em um tubinho, que era, a seguir chacoalhado e, em seguida, levada para um aquário. "Duas ou três horas depois já conseguimos acompanhar o desenvolvimento embrionário. É muito rápido. De um dia para o outro já tem o nascimento da larvinha", afirma Godoy.

Para verificar que o processo de fato tinha funcionado, os pesquisadores usaram espermatozoides frescos como uma espécie de grupo controle.

Segundo Godoy, os resultados foram praticamente iguais tanto para os espermatozoides congelados quanto para os frescos.

O próximo passo na vida dos corais é a fixação em algum local. Dentro dos aquários, os cientistas colocaram um azulejo para a fixação das larvas que irão se tornar corais. Nesse caso, a taxa de assentamento também foi muito próxima entre os dois grupos de espermatozoides analisados.

Com cerca de R$ 168 mil, o projeto, financiado pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, conseguiu criar o primeiro banco de sêmen de corais do oceano Atlântico Sul, segundo a fundação. A iniciativa durou de 2019 a 2022.

Godoy destaca que, a partir de agora, necessita de mais financiamento para as próximas etapas, que incluem a tentativa de congelamento de óvulos —processo, segundo ele, muito mais complexo— e de larvas, acompanhamento do crescimento dos corais que nasceram e tentativa de levá-los ao oceano para entender a capacidade que possuem de recompor a população de uma determinada área.

O pesquisador da UFRGS estima que seja necessário cerca de meio milhão de reais, para um período de quatro anos, para esses próximos passos.

Situação dos corais no mundo

A essa altura, é possível que você já tenha conhecimento sobre a sensibilidade e importância dos corais. Caso não saiba, não tem problema. Em resumo, há grande preocupação com a situação dos corais no mundo, que têm enfrentado elevada mortandade e branqueamento.

Há estimativas que apontam que o planeta perdeu cerca de metade de seus corais desde 1950. E a crise climática só agrava a atual e futura situação desses seres vivos —isso ainda pode causar surpresa para algumas pessoas, mas, sim, corais são animais. Segundo um estudo de 2022, mais de metade dos corais no mundo poderá estar sob condições ambientais inadequadas, mesmo no melhor cenário climático possível —que, tudo indica, não ocorrerá.

"Recifes de coral são ecossistema mais ameaçado no mundo como um todo. Eles são extremamente ameaçados justamente por serem tão sensíveis a qualquer mudança ambiental", diz a bióloga Janaína Bumbeer, gerente de projetos da Fundação Grupo Boticário.

A bióloga aponta que somente a conservação não é mais suficiente, sendo necessárias iniciativas de restauração, como replantações, e a própria busca pelos corais de proveta.

Bumbeer lembra da importância do corais para a biodiversidade marinha. "Estamos falando não só de conservação de algumas espécies, mas também de segurança alimentar, turismo e proteção costeira", afirma.

Um levantamento recente da própria Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza estima que o turismo nos recifes de corais gera cerca de R$ 7 bilhões por ano —tal turismo, logicamente, precisa ser consciente para não prejudicar esses seres vivos.

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