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Inteligência artificial acelera reconstrução da epopeia de Gilgamesh

Há anos pesquisadores tentam montar quebra-cabeça de um dos textos literários mais antigos do mundo

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Erik Ofgang
The New York Times

Em 1872, em uma sala tranquila no segundo andar do Museu Britânico, George Smith estudava uma tabuleta de argila com sujeira quando se deparou com palavras que mudariam sua vida. Na escrita cuneiforme, reconheceu referências a um navio encalhado e a um pássaro enviado em busca de terra. Após limpá-la, o funcionário do museu estava certo de que encontrara um protótipo da história do dilúvio bíblico.

"Sou o primeiro homem a ler isso após mais de 2.000 anos", teria dito Smith.

Ele percebeu que a tabuleta, que fora escavada onde hoje é o Iraque, era uma pequena parte de uma obra muito mais extensa —uma que alguns então pensavam poder ajudar a esclarecer o livro de Gênesis.

A imagem mostra uma escultura em relevo de um homem com uma longa barba e cabelo, segurando um leão em seus braços. O homem está vestido com roupas longas e possui um bastão em uma das mãos. O leão parece estar em uma posição de descanso ou submissão. O fundo da escultura é de cor clara, destacando a figura principal.
Obra com figura atribuída ao semideus Gilgamesh - Thierry Ollivier/Louvre/NYT

A descoberta tornou Smith, que vinha de uma família de classe trabalhadora e aprendera sozinho a escrita cuneiforme, famoso. Ele dedicou o resto de sua vida à busca das peças faltantes da obra, visitando várias vezes o Oriente Médio antes de morrer de uma doença em sua última viagem em 1876, aos 36 anos.

Por 152 anos desde a descoberta de Smith, gerações sucessivas de assiriólogos —especialistas no estudo da escrita cuneiforme e das culturas que a utilizavam— assumiram a missão de reunir uma versão completa do poema conhecido hoje como epopeia de Gilgamesh.

Fragmentos do épico, escrito há mais de 3.000 anos com base em obras ainda mais antigas, ressurgiram conforme tabuletas foram desenterradas em escavações arqueológicas, encontradas em depósitos de museus ou surgiram no mercado paralelo.

Os pesquisadores se depararam, então, com uma tarefa hercúlea. Há até meio milhão de tabuletas de argila guardadas nas coleções mesopotâmicas de vários museus e universidades do mundo, juntamente com muitos mais fragmentos de tabuletas. E, como existem poucos especialistas em cuneiforme, muitas dessas escritas são ilegíveis e muitas outras não foram publicadas.

Assim, apesar de um esforço de gerações, em torno de 30% de Gilgamesh ainda está desaparecido e há lacunas no entendimento moderno tanto do poema quanto da escrita mesopotâmica em geral.

Agora, o projeto de inteligência artificial Fragmentarium está ajudando a preencher algumas dessas lacunas.

Liderada por Enrique Jiménez, professor do Instituto de Assiriologia da Universidade Ludwig Maximilian de Munique, a equipe do projeto usa aprendizado de máquina para reunir fragmentos de tabuletas digitalizadas em um ritmo muito mais rápido do que um assiriólogo humano pode fazer. Até agora, a IA ajudou os pesquisadores a descobrir novos segmentos de Gilgamesh, bem como centenas de palavras e linhas ausentes de outras obras.

"Essa é uma aceleração extrema do que estava acontecendo desde a época de George Smith", diz Andrew George, professor emérito da Universidade de Londres. Ele é considerado a principal autoridade sobre Gilgamesh e produziu uma das traduções do épico para o inglês.

Antes de 2018, apenas cerca de 5.000 fragmentos de tabuletas foram combinados. Nos seis anos seguintes, a equipe de Jiménez conseguiu o mesmo com mais de 1.500 peças de tabuletas, incluindo as relacionadas a um hino recém-descoberto à cidade de Babilônia e 20 fragmentos de Gilgamesh que acrescentam detalhes a mais de cem linhas do épico.

Os fragmentos de Gilgamesh "oferecem ideias intrigantes sobre a história", afirma Jiménez.

No centro do épico está a história de uma amizade entre Gilgamesh, que é um semideus, e Enkidu, rei de Uruk e seu companheiro selvagem. Depois que Gilgamesh e Enkidu matam Humbaba, o monstro guardião da Floresta de Cedros, os deuses matam Enkidu em retaliação. Gilgamesh, em negação, recusa-se a enterrar Enkidu até depois de sete dias, quando uma larva cai do nariz do companheiro.

"Como posso ficar em silêncio?", pergunta repetidamente Gilgamesh. "Quando meu amigo Enkidu, a quem amo, transformou-se em argila. [Devo eu não ser como] ele, e também me deitar, [nunca] para me levantar novamente, por toda a eternidade?"

O semideus embarca, então, em uma jornada para encontrar seu ancestral Utnapishtim, uma figura semelhante a Noé que sobreviveu ao dilúvio e aprendeu o segredo da imortalidade. Depois de vagar pela natureza, ele chega a uma taverna divina à beira-mar, no limite do mundo. Lá, a dona da taverna e cervejeira, Sidhuri, oferece conselhos sábios, dizendo-lhe para desfrutar dos prazeres simples da vida. "Contemple a criança que segura sua mão", ela diz, "deixe uma esposa desfrutar do seu abraço repetido".

Gilgamesh a ignora e continua em sua busca, no fim encontrando Utnapishtim. Mas o grande herói do dilúvio é incapaz de ajudá-lo a alcançar a imortalidade. Em vez disso, ele compartilha sua história de vida antes e durante o dilúvio. O final da epopeia sugere que a sabedoria de Utnapishtim, e o conhecimento que ela confere, é uma das principais recompensas da jornada de Gilgamesh.

Os novos fragmentos descobertos com a ajuda da IA revelam elementos que adicionam detalhes importantes a muitos desses episódios. Um deles revela que, após matar o monstro da floresta, Gilgamesh e Enkidu viajaram para Nippur, o centro religioso da Mesopotâmia e lar do deus Enlil. "Eles foram lá de mãos dadas, numa tentativa de apaziguar Enlil, que estava enfurecido com a morte de Humbaba, seu protegido", diz Jiménez.

Benjamin R. Foster, professor de assiriologia e tradutor de Gilgamesh na Universidade Yale, trabalhou com a equipe de IA em algumas das traduções para o inglês. Segundo ele, as novas linhas também incluíam detalhes sobre os esforços de Enkidu para convencer Gilgamesh a não matar Humbaba. Outras fornecem um trecho de uma oração feita pela mãe de Gilgamesh pedindo ao deus sol que toque Enkidu para que ele possa guiar Gilgamesh pela Floresta de Cedros.

Assiriologistas concordam que trechos da obra sobre Gilgamesh e outras da literatura mesopotâmica permanecem não descobertas em depósitos e sítios históricos não escavados. Muitas das tabuletas abrigadas em museus e universidades são faturas mundanas, cartas privadas, exercícios de livros escolares e outras minúcias do mundo antigo. Os especialistas dizem, entretanto, que até mesmo essas escritas diárias podem oferecer ideias literárias.

Enquanto isso, as linhas recém-descobertas já deram muito o que pensar aos sucessores de Smith.

Entre as mais instigantes, segundo Foster, está outra linha de Utnapishtim: "Você que é composto de carne divina e humana, que eles criaram, assim como seu pai e sua mãe. Eles já construíram um palácio para um tolo, Gilgamesh?".

"Não temos ideia do que ele está falando," diz Foster. Mas ele diz acreditar que um novo fragmento, descoberto por IA ou por métodos tradicionais, em breve ajudará a resolver o quebra-cabeça.

"Quem sabe, pode aparecer amanhã", afirma ele.

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