Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Álvaro Machado Dias

Decodificando a voz que mora na cabeça

A maior parte das pessoas possui uma voz interior que a ciência começa a decifrar

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O que estar em contato consigo mesmo significa para você? Estar em paz, vivendo uma harmônica conexão com o ambiente, popularizada pelo conceito de flow? Pré-resultados de pesquisa indicam que esta é a hipótese preferida da maioria. Porém, é provável que seja mal fundamentada: experiências do tipo "comigo mesmo" são bem mais comuns do que experiências "em harmonia com o ambiente".

Uma alternativa mais sensata é considerar que estar consigo mesmo simplesmente queira dizer estar monitorando suas próprias percepções e pensamentos. Paz e flow criam condições para a intensificação deste monitoramento, o que faz com que sejam confundidos, ignorando que também nos sentimos em contato íntimo na angústia, no desespero e na dúvida.

Mulher meditando em meio a natureza - Personare

Como paz e flow possuem conotações afetivas quase opostas a angústia e desespero, o contato consigo mesmo não é determinado afetivamente, como muitos sugerem. A alternativa mais convincente é que tenha como base a percepção da voz interior.

É ela que dá os contornos mais nítidos à autoconsciência prazerosa, como também à autocrítica. São as conjecturas enunciadas em silêncio que nos levam a assumir que somos agentes de nossas preferências e pais das nossas ideias, em franca contradição com a perspectiva, muito mais sóbria e consistente, de que são as ideias que colonizam os cérebros à luz do ethos de uma época.

A voz interior é muito mais importante para a definição da nossa identidade, de como nos sentimos e como representamos a realidade do que a maioria das construções psicológicas utilizadas para tanto. As seções seguintes sintetizam algumas das descobertas mais importantes no tema. A ideia é que possam servir de guia para que você perscrute a sua voz interior e que também indiquem caminhos científico-tecnológicos na longa jornada até a compreensão da natureza do pensamento.

Silêncio, diálogo e monólogo interior

Em 2019, um jovem youtuber entrevistou uma moça que alega não ter voz interior, algo que lhe pareceu chocante. Mais de 3 milhões de pessoas assistiram à entrevista e, pelos comentários, também ficaram estarrecidos.

Porém, o entendimento científico é que até um quarto das pessoas identifique-se ao menos parcialmente com a moça entrevistada. Parte perdeu a voz interior em função de doenças neuropsiquiátricas, como o Alzheimer, que sabidamente reduz a capacidade de pensar em palavras mentalizadas, e parte nunca contou com essa capacidade.

A voz interior é utilizada em várias situações rotineiras, por exemplo, na manutenção de um número de telefone na memória, até que possamos anotá-lo. Muitos dos que se dizem sem voz interior possuem esta dimensão cognitiva, chamada alça fonológica da memória de trabalho, preservada. Isso explica porque não necessariamente apresentam rebaixamento do QI.

A dimensão da voz interior que pode estar ausente desde o nascimento em pessoas de QI normal é a da imaginação espontânea em palavras. Esta é muito importante para a organização dos pontos de vista individuais, criatividade verbal —pessoas verbalmente criativas tendem a ter vozes interiores exuberantes— e expressão psicológica.

No entanto, é possível ter uma vida normal sem contar com isso, o que serve de ressalva à tese de que a inteligência se reduza ao tratamento que damos às nossas ideias, enquanto estas se desdobram em palavras conscientes.

A visão tradicional do surgimento da voz interior, criada por Lev Vygotsky há mais de cem anos, é de que isto se dá em momento relativamente avançado do desenvolvimento mental infantil. O uso da linguagem emergiria imitativo e rapidamente se tornaria comunicativo, social.

Em seguida, a direção intencional seria invertida, levando a criança a adquirir o hábito de conversar consigo mesma. A internalização seria mais um passo nesta sequência, inicialmente como diálogo, só depois como monólogo, a partir dos 5-6 anos de idade.

Em seu cerne estaria a dinâmica de construção e subsequente manipulação das posições de emissor e destinatário das representações verbalizadas. Começamos como destinatários, viramos emissores, então passamos a jogar nas duas posições, no modo sonoro, para então partimos para o diálogo interior, que finalmente abre espaço ao convívio com os monólogos silenciosos.

Estudos com bebês de 18-36 meses indicam que estes processos aquisitivos não funcionam de maneira tão organizada: a aquisição da linguagem também é auxiliada pela internalização do discurso silencioso. Vygotsky acertou o que prevalece em cada fase do desenvolvimento, mas não conseguiu captar certas dinâmicas sutis que operam sob elas.

De qualquer modo, aquilo que descreveu possui uma importância que transcende a compreensão do neurodesenvolvimento: a diferença entre diálogos e monólogos interiores persiste por toda a vida, servindo de baliza emocional aos mais atentos.

Quando estamos nervosos, ansiosos, arrependidos ou com vergonha, tendemos ao diálogo silencioso, o qual é menos frequente quando estamos nos sentindo em paz ou no flow. Isso não significa que emoções intensas ativem estados mentais dialógicos e vice e versa.

Estados de euforia não tendem a induzir diálogos interiores, do mesmo modo que estados meditativos não estimulam monólogos. Ambos tendem a vir à tona silenciosamente.

Associações afetivas e aspectos qualitativos das vozes interiores

Ainda não existe uma teoria consistente sobre aquilo que faz com que alguns estados fenomenológicos sejam favoráveis à emergência de diálogos interiores, outros a monólogos e alguns ao silenciamento mental.

Diálogos interiores tendem a ter conotação negativa. Eles surgem quando a confiança nos direcionamentos intencionais decai, o que leva a experiências persecutórias ou de cobrança, as quais, do ponto de vista afetivo, não são muito diferentes dos sintomas psicóticos.

Em paralelo, vêm à tona pela elevação do desemparo e do senso de ameaça (por exemplo, em um sequestro), que lhe dão características acolhedoras. Um modo de unir as duas coisas é considerando que a tendência a dialogar silenciosamente consigo mesmo surge em situações que evocam a presença dos pais, mas é provável que existam exceções a esta regra, razão pela qual recomendo um grão de sal.

Já os monólogos interiores acompanham uma miríade de reflexão da vigília e também aparecem em sonhos, com características metacognitivas, como questionamento do sonho.

Esses monólogos tanto podem ser induzidos, quanto podem surgir de maneira espontânea. Exemplos do primeiro tipo incluem a leitura silenciosa, a memória de trabalho fonológica e as tentativas de solução de problemas. O segundo tipo se manifesta quando vagamos mentalmente por paragens pouco definidas, na transição da vigília para o sono (estado hipnagógico) e nos próprios sonhos.

Estudos de neuroimagem mostram que as cartografias cerebrais que acompanham as duas condições são distintas. Isso corrobora a tese de que a imaginação possui uma natureza diferente da reflexão hipotético-dedutiva, em linha com o que a introspecção sugere.

Existe uma gradação na aproximação da voz interior com a fala. Por vezes, usar a voz interior significa falar sem emitir som. O fenômeno gerado assim é chamado de subvocalização e pode ser inteiramente decodificado usando eletrodos no pescoço (EMG) e na cabeça (EEG).

Em outras ocasiões, a voz interior irrompe apartada do aparelho fonador, mas, ainda assim, faz uso convencional da sintaxe e da sonorização interior. Nestas situações, o tempo para se processar interiormente uma ideia equivale ao de falá-la.

Finalmente, há manifestações mais abstratas da voz interior, que se aproximam ao entendimento intuitivo que temos do que seria o pensamento. As propriedades acústicas somem, assim como a linearidade. Esta é a manifestação da voz interior que mais se combina às experiências afetivas, representações visuais e experiências olfativas, na formação da realidade subjetiva.

No âmbito das manifestações acústicas e das afetivas, a maioria das pessoas tem uma voz interior com características sonoras e de personalidade estáveis. Essa voz costuma ser parecida com a exterior, mas não idêntica. Há casos de mulheres com vozes interiores masculinas e vice e versa, mas este segundo caso parece ser menos comum.

Há relatos clínicos de pessoas que passaram por alteração de identidade de gênero e que não tiveram sua voz interior alterada de maneira correspondente, bem como casos de pessoas que viram no descompasso entre o gênero de sua voz interior e o da voz exterior razão para a mudança. No entanto, são exceções à regra do alinhamento interno-acústico-identitário.

A idade estimada da voz interior também pode variar em relação à biológica. Não existe literatura científica sobre isso, mas os relatos que colhi para escrever este artigo sugerem que vozes mais jovens são mais comuns do que seu oposto. Grão de sal, por favor.

A voz interior não costuma permanecer ativada de maneira contínua, na mente das pessoas que não estão sofrendo com transtornos mentais. Em contraste, praticamente todos os transtornos psiquiátricos são caracterizados por formas de consolidação de vozes interiores deletérias.

Entre as pessoas mentalmente saudáveis, a leitura silenciosa tende a ser uma das atividades cognitivas que mais estendem esta forma de verbalização. Nestes casos, a voz da cabeça não tende a reproduzir a escrita, palavra a palavra, mas a aparecer e desaparecer de maneira súbita.

Esta constatação alinha-se à tese de que a própria consciência emerja mais como arquipélago do que como continente mental, nas situações de equilíbrio e saúde mental preservada.

Decodificando a voz interior por meio de registros cerebrais e IA

Estudos recentes mostram que é possível reconstruir mentalizações verbais a partir de chapas de ressonância magnética funcional (fMRI). O princípio é simples: a fMRI registra a perfusão sanguínea nas áreas envolvidas no processamento mental, estando associada de maneira metabólica ao pensamento, cuja natureza permanece opaca. O compilado é composto por pixels 3D (voxels).

Cada um deles comporta milhões de neurônios, o que reforça a perspectiva de que não há decodificação neurológica direta. Ainda assim, é possível tratar os voxels como peças de um quebra-cabeças, cuja montagem será definida como exitosa, na medida em que reconstruir o conteúdo subvocalizado.

A tarefa envolve o uso de algoritmos de reconhecimento de padrões (IA) para identificar o que aparece na ressonância quando os sujeitos subvocalizam vogais, sílabas, palavras, frases e assim por diante. Após inúmeras horas de treinamento, o sistema é direcionado à extrapolação, usando palavras novas e até frases.

Como as verbalizações estão associadas a diferentes experiências na mente individual, não é possível generalizar o treinamento de uma pessoa para outra, o que reduz o risco de que alguém tentar extrair ideias à força. Injetá-las, dadas as definições acima, não cabe na discussão. Ainda assim, é evidente que a evolução do método aponta para a decodificação sem treinamento.

A novidade mais quente nesta área usa uma versão antiga do GPT da Open AI para recriar frases mentalizadas, tendo como "prompt" a atividade metabólica nas principais áreas de processamento semântico do cérebro.

Ao mesmo tempo em que isso aumenta a chance da IA trocar uma ideia por outra, de sentido análogo, expande muito o campo das futuras aplicações clínicas da metodologia. A taxa de acerto na reconstrução de frases que os sujeitos ouviram (N:7) gira em torno de 80%.

Importante notar que essas são vozes interiores induzidas, de base sensorial. Não houve tentativa de decodificação da imaginação verbal espontânea, a qual tende a se escorar em manifestações abstratas da voz interior, as quais são bem mais sutis e tendem a se fundir com outras formas de mentalização.

Voz interior e a natureza do pensamento

Se a voz interior fosse uma instância programável, ela teria os seguintes módulos:

Condição de manifestação: dado pelas conjunturas que levam à execução de programas verbais que o agente cria para instruir a si mesmo.

Monológico-dialógico: dado pelo grau de separação entre emissor e receptor da mensagem.

Sensorial-abstrato: dado pelo uso da subvocalização e geração de vozes interiores com propriedades acústicas bem definidas ou por graus crescentes de abstração.

Fenomenológico: dado pelas propriedades etárias, afetivas e de personalidade da voz interior.

É lógico que a voz interior não pode ser programada. Por outro lado, a reconstrução de conteúdos verbalizados internamente mostra que esta manifestação da subjetividade possui relações diretas com o que acontece no cérebro enquanto emerge, o que pode ser decodificado e aplicado em tratamentos clínicos e no desenvolvimento de futuras máquinas pensantes.

Esta perspectiva não aponta para a abolição dos mistérios da mente, mas certamente mostra que conhecimentos relativamente simples podem ter impactos imensos, tanto em termos científicos, quanto pessoais.

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