Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Descrição de chapéu tecnologia Rússia China

Robôs assassinos mudarão guerras para sempre

Armas autônomas se tornaram centrais às estratégias militares das grandes potências bélicas

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Há sinais de que a maneira como as guerras são travadas esteja mudando para sempre. Sistemas bélicos autônomos (AWS) se tornaram centrais às estratégias militares de grandes potências, enquanto demos impressionantes pipocam nas feiras setoriais e fóruns especializados, como exemplificado por um cachorro robótico equipado com metralhadora em seu dorso que estabiliza melhor a arma que os braços de um soldado e pelo drone Valkerie, capaz de atacar alvos a 500 km de distância sem interferência humana.

Há uma intensa movimentação na ONU para regular o uso dessas armas, cuja proliferação o negociador austríaco da matéria no órgão, Alexander Kmentt, caracteriza como "um dos maiores pontos de inflexão da história da humanidade", mas não há consenso no horizonte próximo, dado que isto iria contra o interesse de algumas das principais potências militares do globo.

Cão robô é apresentado na cúpula de inteligência artificial militar, em Haia, na Holanda - Toby Sterling - 15.fev.23/Reuters

"Estados Unidos, Rússia, Austrália, Israel e outros argumentam que nenhuma lei internacional é necessária por agora, enquanto a China quer definir limites legais estreitos a ponto de não terem qualquer efeito prático" (The New York Times, 21/11/23, citando fontes não identificadas nominalmente).

A Guerra da Ucrânia tem papel relevante nessa mudança de paradigma. Em 2023, o país invadido incorporou o quadricóptero Saker Scout, que carrega bombas que podem ser despejadas sobre os inimigos sem intervenção humana, feito que serve de prenúncio sobre o que vem por aí.

O dia a dia da guerra, no entanto, é marcado pelo uso de veículos não tripulados menos tecnológicos, como os que vêm afundando embarcações russas na baía de Sebastopol, na Crimeia, pelas mãos de soldados que mais parecem campeões de videogame.

Ao mesmo tempo que vêm trazendo importantes conquistas materiais para a Ucrânia, essas armas operadas a distância ajudam a explicar por que o entendimento dos maiores especialistas convergiu na perspectiva de que a guerra dificilmente terá fim sem perda de território ucraniano, entre outras condições que na prática se traduzem em derrota ocidental ou, ao menos, em ausência de vitória.

Os 18% do território ucraniano ocupados pelas tropas de Putin não estão sendo resguardados apenas com trincheiras e minas, mas também com enxames de drones, que sobrevoam as tropas ucranianas ininterruptamente, neutralizando ataques-surpresa.

O mesmo se dá do outro lado, mas fato é que o tempo joga contra Zelenski e seu exército. Para complicar, o embaralhamento dos sinais utilizados para controlar essas armas de controle remoto se tornou uma habilidade crucial e a Rússia vem levando a melhor nesse front.

Um entendimento que segue é que armas imunes aos bloqueadores de sinais, isto é, plenamente autônomas, não servem apenas para cortar custos e reduzir as polêmicas que surgem com a morte dos conscritos. Elas de fato podem mudar a conjuntura, incluindo o vaticínio supramencionado sobre o desfecho provável dessa guerra.

A independência em relação à central de comando abre frentes poderosas em níveis tático e estratégico. As frentes táticas incluem a possibilidade de a arma autoexplodir ao detectar que sua eliminação é iminente, afetando equipamentos e soldados do outro lado, e remover soldados feridos do campo de batalha.

Também é aventado que essas AWS tenderiam a levar a melhor em operações táticas com submarinos e em combates aéreos. Várias manobras de interesse são evitadas porque dependem de controle motor absoluto e aumentam o risco de desmaios.

Um exemplo é a "manobra da cobra", em que o jato que está sendo perseguido termina atrás do seu perseguidor, tal como exibido em "Top Gun: Maverick". A manobra foi introduzida por Viktor Pugachyov (1989) e reproduzida pouquíssimas vezes desde então, dada a sua dificuldade extrema. A autonomia elimina fragilidades que parecem inexoráveis, mas que na realidade são apenas humanas.

As frentes estratégicas abrangem a capacidade de vencer confrontos urbanos em território inimigo, o que é tido como bastante desafiador, e a completa redefinição da maneira como as estratégias militares são concebidas, pela transferência das decisões de alto nível para IAs capazes de gerar análises preditivas superiores às dos oficiais.

Juntando o tático ao estratégico, o que mais amplamente se busca é o desenvolvimento de sistemas autônomos que permitam a conversão de planejamentos estruturantes, de natureza matemático-computacional, em coordenação algorítmica das milhares de escolhas que marcam o minuto a minuto no campo de batalha: decisões sobre disparar ou não, avançar ou retroceder etc.

Entre as consequências do progresso nessa direção avalio que estejam: (1) a redução do limiar para a entrada em conflitos bélicos por parte dos países possuidores de sistemas preditivos e armas autônomas mais eficientes e (2) a intensificação dos desequilíbrios geopolíticos de natureza coercitiva e das diversas formas de repressão interna, em franco contraste com a tese de que o progresso tecnológico se traduz sempre em redução dos conflitos e da violência.

Como reagir nos moldes tradicionais será cada vez mais difícil, acredito que (3) ataques com armas biológicas serão vistos como mais atraentes por grupos insurgentes dotados de tecnologias autônomas menos desenvolvidas. A barra do horror subirá muito pelas suas mãos.

Outra perspectiva é que (4) vicissitudes do universo bélico, como a maior facilidade de defender que de atacar —uma das principais heurísticas militares existentes diz que são necessários três soldados atacando para cada soldado defendendo uma posição— e as vantagens motivacionais que tanto contam na atualidade, percam parte de sua importância.

Em função disso, acredito que (5) as guerras seguirão um curso paralelo ao que se observa nas ligas esportivas mais competitivas, como o futebol europeu e a NBA, que vêm se tornando mais previsíveis ao longo dos anos, conforme demonstrado experimentalmente. Vietnã, nunca mais.

O papel das tensões indo-pacíficas na proliferação das armas autônomas

Ao passo que a Guerra da Ucrânia serviu para firmar a convicção de que mesmo armas autônomas simples podem desequilibrar o jogo, é a tensão entre Estados Unidos e China que vem mobilizando os investimentos financeiros e científicos de grande monta.

O assunto de maior inquietude na relação entre os rivais é a autonomia de Taiwan. Xi Jinping visitou os Estados Unidos em novembro do ano passado e disse a Biden que a invasão da antiga Ilha de Formosa não faz parte dos seus planos. O presidente americano replicou na mesma linha pacificadora, enfatizando que não iria fomentar a sua independência, o que seria "deal breaker" (fator decisivo) para os chineses. A visita sinalizou ao mundo que seria precipitado falar em Guerra Fria 2.0.

No entanto, de volta à sua terra natal, Xi fez declarações diversas —como em seu discurso de Ano-Novo: "A China com certeza será reunificada"— e, às vésperas da eleição presidencial no país insular, deu enfáticas demonstrações de descontentamento com o favoritismo do candidato da situação, Lai Ching-te, com uma plataforma acusada pelos chineses de ser pró-independência.

Do lado atlântico, não param de surgir oficiais aquecendo a tese de que uma guerra entre as duas potências é iminente. Exemplos incluem oficiais da mais alta patente, como o general e chefe do comando americano de mobilidade, Mike Minihan, que escreveu um memorando vazado para a mídia (2023) sobre a factibilidade disso acontecer em 2025 em torno da questão taiwanesa.

O cenário reativo vem levando ao aumento das pressões em Taiwan e nos Estados Unidos para que estes invistam no desenvolvimento conjunto de armas tecnológicas na pequena nação insular, até porque qualquer ação beligerante chinesa seria precedida pelo bloqueio naval da pequena ilha. Dada a assimetria de contingentes humanos, armas autônomas são vistas como essenciais.

Do lado oposto do estreito de Taiwan, os estrategistas consideram que os desafios mais imediatos para a retomada da ilha são as dificuldades logísticas colossais dessa operação, que dependeria de atuação de uma frota de veículos de assalto anfíbios capazes de invadi-la sem levar à destruição de seus portos, e o elevado número de baixas. Armas autônomas mexem nessa equação, levando assim a uma perigosa convergência de entendimentos.

Fontes dizem que os investimentos de Pequim nessas tecnologias estão na casa das diversas dezenas de bilhões de dólares. O Pentágono, que acaba de lançar a iniciativa Replicator, não deve ficar atrás, conforme esclareceu a secretária de Defesa, Kathleen Hicks: "A iniciativa Replicator foi concebida para superar a principal vantagem chinesa, que é de volume. Mais embarcações, mais mísseis, mais técnicos".

Ao produzir milhares de sistemas bélicos autônomos, os Estados Unidos vão poder "conter o volume do Exército chinês com nosso próprio volume, que conta com plataformas que são pequenas, espertas, baratas e numerosas".

Com Estados Unidos e China tratando a autonomia bélica como objetivo estratégico e diversos outros países se negando a pactuar qualquer forma de moderação, é esperado que AWS mudem a maneira como as guerras são travadas muito antes de o Robocop saltar das telas —e que a humanidade como um todo sofra as consequências dessa evolução na capacidade de infligir sofrimento e de matar.

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