Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Álvaro Machado Dias
Descrição de chapéu guerra israel-hamas Rússia

Guerras pela internet

A fúria da reação israelense cria um "momento Zelenski" para a causa palestina

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A invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022 foi acompanhada por intensa mobilização no front cibernético. Apostava-se que esta seria uma guerra em que os hackers teriam papel fundamental. O histórico era sugestivo.

Em 2015, a malha energética de Ivano-Frankivsk (oeste da Ucrânia) foi severamente afetada por um programa espião parecido com o que havia parado as maiores plataformas de produção de hidrocarbonetos do mundo, a saudita Saudi Aramco, em 2012, a italiana Saipem, em 2017 e a americana Colonial Pipeline em 2021.

Manifestantes em apoio aos palestinos e contra ataques de Israel, na avenida Paulista - /Ato Press/Agência O Globo

Contrariando as expectativas, o real impacto das ações de sabotagem digital foi baixo e o que se verificou foi a inovação sendo concentrada na indústria bélica, especialmente no setor de drones e outros dispositivos autônomos.

A verdadeira disputa digital se deu na esfera da comunicação, em que muito mais importante do que atacar é angariar apoios. Nela, Volodimir Zelenski, presidente da Ucrânia, levou a melhor desde o início.

Os mais de US$ 160 bilhões obtidos dos Estados Unidos e da União Europeia, assim como a cessão de mísseis de longo alcance (ATACMS) e caças F-16, entre outras armas que seus aliados estavam relutantes em oferecer, foram facilitados pela capacidade do presidente ucraniano se estabelecer como o maior influencer do planeta na última fase da pandemia. Nesse período, suas transmissões fizeram parte da rotina de americanos e europeus angustiados com o futuro e também um tanto entediados.

É claro que nada teria acontecido se os estrategistas ocidentais achassem impossível vencer a Rússia, mas o protagonismo local não pode ser desconsiderado —e nele a internet possui papel central, o que faz sentido dado que a Ucrânia é mera abstração na mente dos americanos.

O ponto de máxima intensidade foi o especial de capa para a Vogue, "Retrato da coragem", em julho de 2022, com a primeira-dama Olena Zelenska "vestida por estilistas locais", e seu marido usando a indefectível camiseta verde oliva, a qual faz parte de uma estratégia de fixação imaginária menos associada à guerra do que a Steve Jobs, o cara essencial que parecia usar uma camiseta só.

A resposta à invasão teve como marco os recrutas com lançadores de foguetes Javelin no ombro. Simbolicamente forte, militarmente incipiente. Em julho, o país recebeu o lançador de múltiplos foguetes HIMARs, que elevou o nível da reação. No fim deste mesmo mês, saiu a revista.

Choveram críticas, mas a massa de eleitores "ocidentais" ficou tudo menos indiferente à imagem de bravura austera à la Hermès. É assim que trabalha a calculadora bélica: não se defende um território com likes, mas com dinheiro, armas e apoio diplomático, os quais dependem de cálculos políticos sobre o seu resultado na próxima eleição.

A estratégia digital do Hamas

É sabido que o Hamas planejou meticulosamente tanto os ataques a Israel quanto o uso do material produzido nas ações. Os terroristas fizeram live streaming de cenas terríveis.

Estes vídeos foram rapidamente vetados das plataformas do Ocidente, o que era fácil de se prever, de modo que o seu impacto na opinião pública americana e europeia não foi tão grande. Em contraste, seu canal no Telegram, que reúne seguidores mais próximos, triplicou de tamanho nos dias subsequentes aos ataques.

Deste ponto em diante, o que prevalece no debate público é o entendimento de que fizeram uma opção sem dia seguinte. Eu tenho minhas dúvidas. Uma possibilidade seria que o planejamento teve como aspecto central a criação de um momento de grande visibilidade para a causa palestina.

De acordo com este raciocínio, o Hamas apostou na fúria cega de Netanyahu e no fato de cada celular em Gaza estar conectado a todos os outros do planeta para comandar a narrativa em escala global, criando uma situação insustentável a ponto de tornar verdadeiro o vaticínio que a revista Time estampou: "A promessa de Israel de eliminar o Hamas não é realista".

Sua inspiração seria o Taleban, mais forte hoje do que quando foi derrotado pelos Estados Unidos há 20 anos. Valeria uma expressão usada pelo grupo afegão: eles têm os relógios, mas nós temos o tempo.

Note que não estou supondo que os líderes do Hamas tenham imaginado toda a extensão do que viria, apenas que possa lhes ter ocorrido que a transmissão do drama dos reféns e, por consequência, da população local teria um efeito poderoso, capaz de criar um "momento Zelenski" para a causa palestina, com eles como pivô.

De fato, a reação israelense seguiu um script alinhado a esta tese, com a ordem de remoção de mais de 1 milhão de pessoas, de restrição à entrada de ajuda humanitária e de bombardeio de campo de refugiados.

Também como esperado, a opinião pública ocidental começou a mudar quando as cenas de caos e destruição passaram a lhe confrontar. Especialmente sintomático é fato do fato do Hamas ter dominado a narrativa sobre o bombardeio do hospital de al-Ahli, em 17 de outubro. Hoje, o que se vê, mais e mais, são especialistas falando na TV aberta americana sobre a possibilidade de estarem ocorrendo crimes de guerra em Gaza e mesmo do conflito escalar para limpeza étnica, o que não é nada abonador.

Percebendo a enrascada, os americanos pediram que a invasão por terra fosse adiada. Havia motivos paralelos, como o deslocamento de porta-aviões para inibir a entrada do Irã, mas a percepção de que um desastre humanitário poderia se seguir, afetando a situação doméstica nos Estados Unidos, era clara.

O adiamento não durou muito, e assim é que, em 1º de novembro, Biden pediu uma pausa humanitária no conflito Israel-Gaza, no que foi solenemente ignorado.

Isso vem na esteira das movimentações nos maiores centros de prestígio do mundo (as universidades americanas e europeias) e de protestos cada vez maiores ao redor do mundo.

Sensibilizar os europeus tem papel relevante, pois as pessoas ali ligam pouco para o Oriente Médio, ao mesmo tempo em que se mostram simpáticas à causa palestina. Pesquisa do YouGov anterior à guerra indicava que, entre os europeus que se posicionam, "há uma tendência de preferir o lado palestino; a exceção é a Alemanha, que está dividida".

Agora, importante mesmo é movimentar o debate nos Estados Unidos, onde pesquisa do Instituto Gallup de 2022 indicava apoio equivalente aos israelenses e palestinos entre os democratas: "40% preferem Israel, 38% os palestinos". Semana passada, outra pesquisa do mesmo instituto mostrou que "a aprovação do presidente Biden caiu 11 pontos entre os democratas".

Apoiar Israel em guerra não sai de graça, mas caro mesmo é manter dois fronts internacionais de conflitos em véspera de ano eleitoral. Em paralelo, o holofote global sobre esta guerra pode desalinhar os blocos de poder da OTAN, os quais vêm jogando junto na defesa da soberania ucraniana. No gráfico de tendências, vê-se a erosão do suporte a Netanyahu emergindo da convergência destes fatores.

Isso não é tudo. Se no ano que vem os republicanos vencerem nos EUA, o apoio à Ucrânia diminuirá, e o país se verá em graves apuros. Essa perspectiva também é importante para a hipótese de que o Hamas incluiu a reação em seu planejamento, que foi ainda mais intrincado e multifacetado do que parece.

Não há provas da participação iraniana no planejamento e, menos ainda, de conhecimento prévio russo dos ataques. Ainda assim, aquela é dada como certa, enquanto um dos vitoriosos nesta história é Vladimir Putin, parceiro do Irã, que tem experiência prévia em manipulação do cenário eleitoral americano e certamente adoraria ter instrumentos para "aquecer a disputa" ali.

Conforme reportado pelo jornal The Hill, lideranças do Hamas viajaram a Moscou em março, e Ismail Haniyeh, líder do grupo, voltou ao país em setembro. Menos de um mês depois, no dia em que Putin celebrava seu aniversário (7/10), os ataques em Israel começaram.

Neste mesmo dia, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores russo, Maria Zakharova, ligou para as partes, exortando-as a um cessar-fogo imediato, capaz de "cessar a violência", em linha com a demanda que vem se tornando hegemônica no Ocidente.

A coincidência de datas é mera curiosidade, mas não há dúvidas de que está no interesse de Putin jogar junto para esfriar a audiência política do maior dos influencers ocidentais.

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