Antonia Pellegrino e Manoela Miklos

Antonia é escritora e roteirista. Manoela é assistente especial do Programa para a América Latina da Open Society Foundations. Feministas, editam o blog #AgoraÉQueSãoElas.

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Antonia Pellegrino e Manoela Miklos

'Seu assédio só embrulhará peixe'

Após onda de denúncias, setor audiovisual faz acordo contra assédio no país

Em 2017, nós do blog #AgoraÉQueSãoElas fizemos nesta Folha a grande quebra de silêncio sobre assédio sexual no Brasil, que desencadeou a maior campanha no país em rede de combate à violência contra mulher: #MexeuComUmaMexeuComTodas.

À época, ainda editando o texto denúncia, intitulado "José Mayer Me Assediou", optamos, junto com a autora, por suprimir a parte da história em que ela procurava uma superior hierárquica mulher para contar o que estava lhe acontecendo e, ao invés de acolhimento, ouvia: "Se você denunciar, eu te processo. Seu assédio vai embrulhar o peixe do dia seguinte".

A ameaça contida na frase nasce da pusilanimidade covarde de quem acoberta crime por um salário, ou da perversão de quem é cúmplice de crime para manter seu poder? Outras nuances desta revitimização humilhante também aconteceram depois da denúncia ser publicada. Nas inúmeras colunas de fofoca em jornais, feeds e timelines que descredibilizavam a vítima. O ineditismo da história a tornara inacreditável.

Afinal, quem recusaria um assédio de galã? Bem-vindos ao século 21.

Naming and shamming, como dizem as gringas, ou escracho público, como se fala por aqui, é para as fortes. Foi por conhecer bem esta realidade que, em dezembro de 2017, quando a chefe de uma mulher que havia sofrido estupro em um set de filmagem me procurou para fazermos uma denúncia pública, eu propus outra coisa.

Gravei um vídeo naquela noite, feito na cozinha com luz ruim e câmera de computador, convocando as lideranças do setor audiovisual independente brasileiro a assumirem suas responsabilidades em caso de violência nos ambientes de trabalho.

A lei trabalhista diz que, quando um caso de violência ocorre no ambiente de trabalho, aquilo não diz respeito somente à vítima e ao agressor. É responsabilidade de todos os agentes da relação de trabalho, sobretudo dos superiores hierárquicos, que são passíveis de enquadramento criminoso, mesmo quando cúmplices.

A provocação resultou numa reunião, em final de janeiro de 2018, entre produtoras e produtores do setor independente. A reunião engendrou um grupo de trabalho que, com uma junta de advogadas e advogados, elaborou o pacto antiassédio no audiovisual.

Um pacto sem precedentes, que acaba de nascer, para começar a mudar uma cultura e produzir um ambiente onde não ocorra mais assédio —e se ocorrer, que exista a confiança para denunciar sem retaliação, ameaças ou perversões, mas com acolhimento.

Um pacto assinado pela Ancine, por sindicatos como APRO e Sicav, grandes players como Conspiração Filmes, O2, Pródigo, Gullane, entre outros.

Essa é uma história com começo, meio e fim —e recomeço. De um setor que se viu atingido por denúncias graves e soube reagir. Sem criar uma caça às bruxas, mas entendendo que ou a mudança é estrutural, e portanto cultural, ou não é. E o recomeço já é. Porque de nada adianta uma cartilha que não saia do papel.

Construir este pacto na prática é responsabilidade de quem vive o dia a dia do cinema, da publicidade e do entretenimento brasileiro.

Mas é sobretudo uma história de empoderamento que conta como uma voz pode ser ouvida, mesmo através de um vídeo tosco. Uma voz que se soma a tantas vozes de mulheres e homens para dizerem que o tempo do assédio acabou, ecoando Oprah nos trópicos.

Porque somos um grupo de pessoas que compartilha a crença de que: para haver mudança, nós devemos construí-la. E para quem ainda acha que denúncias de assédio servem para embrulhar peixe, fica a dica: aproveite essa história para entender o profundo sentido do "não passarão".

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