Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata
Descrição de chapéu

Alala x

Homem de saia é machismo? Branco fantasiado de índio é etnocentrismo?

Adams Carvalho/Folhapress

Deus —em quem não acredito— e meus três ou quatro leitores —tenho fé que existam— são testemunhas do quanto eu já usei meu espaço de cronista para defender o politicamente correto. A luta pelos direitos das minorias é um avanço civilizatório e desaprovar a manifestação dos preconceitos faz parte dela. Melhor os racistas sentirem-se constrangidos do que os negros. Melhor reprimir o machismo do que as mulheres. E por aí vai.

De uns tempos pra cá, no entanto, o discurso politicamente correto parece ter perdido um pouco a noção do que é lutar pelos direitos das minorias e o que é ver cabelo em ovo. E proibir o cabelo no ovo. Porque o cabelo desrespeita os direitos do ovo. A ovacidade calva do ovo. Numa sociedade que estigmatiza os que não têm cabelo. Principalmente as mulheres sem cabelo. Aliás, antes de discutir o cabelo no ovo, temos que discutir o artigo o. Chamemos de x  ovx. Chamemxs de x  ovx. Não, não chamemos de nada, porque chamar o ovo de ovo já é impor a ele uma existência de ovo, com todas as conotações sociais que a ideia de ovo traz. E se o ovo quiser ser um dado? Ou uma nuvem? Diante do ovo, resta a nós que não somos ovo apenas o respeitoso silêncio.

O último cabelo em ovo a que tive acesso foi um vídeo chamado Fantasias para não usar neste Carnaval, que veio encalhar na curva de rio sujo que é o meu Facebook. Quando comecei a assisti-lo, achei que era uma sátira feita por algum grupo de direita. Algum Porta dos Fundos do MBL. Mas, pro meu espanto, era a sério.

Homem vestido de mulher: por que está errado? Além da ideia ser machista e desrespeitar as mulheres, ela também é preconceituosa contra as pessoas trans e apenas reforça os estereótipos de gênero. Índio ou índia. Ela pega uma (sic) cultura ampla e diversa e a constrói de forma estereotipada e generalizada. De que adianta usar um cocar para curtir um bloco de Carnaval quando a população indígena é vítima de genocídio?. Não vou brindá-los com a exegese das fantasias de cigano ou muçulmano. O Google tá aí.

Folião se fantasia de 'Vai Malandra', em referência ao clipe de Anitta, em bloco no Rio
Folião se fantasia de 'Vai Malandra', em referência ao clipe de Anitta, em bloco no Rio - Bruna Prado/UOL

Homem vestido de mulher é machista?! Um barbudo de tutu e sutiã não está dizendo que mulheres são risíveis, está dizendo que ele, que não é mulher e é barbudo, torna-se risível de tutu e sutiã. Tampouco está dizendo que um ser nascido anatomicamente homem não pode se assumir e ser tratado como uma mulher. Ele, o barbudo, não é mulher. A graça está no choque entre pessoa e fantasia, assim como um índio não é engraçado, o branquelo de óculos e cocar, é.

Carnaval é a festa da inversão há muitos séculos. No clássico A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, o filósofo russo Mikhail Bakhtin fala das missas do asno, quando se punha um burro no altar das igrejas para rezar a missa. Plebeus se vestiam de nobres, nobres de plebeus. Homens de mulher, mulheres de homem. Longe de reforçar estereótipos, a inversão contida nas fantasias e o humor que ela traz quebram a hierarquia, desconstroem a sacralidade dos lugares estabelecidos, ensinam a nós, como bem colocou o historiador Paul Veyne, que o que é poderia não ser. Exatamente o que uma esquerda esclarecida, crítica e aberta à complexidade deveria fazer.

É desesperador. As eleições estão aí adiante, e a esquerda empurra os eleitores pro colo da direita ao apresentar-se com a fantasia mais grotesca deste Carnaval: ombudsman do Cacique de Ramos.

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