Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Luz por todos os lados

Nunca foram tão importantes os almoços de domingo

Ilustração de Adams Carvalho para Antônio Prata de 28.out.2018.
Adams Carvalho

A fruteira fica no centro da mesa, no centro da sala, no centro da casa. Tipo um umbigo multicolor no encontro entre o Meridiano de Greenwich e o Equador deste apartamento ensolarado onde tenho a sorte de viver com a minha mulher, minha filha, meu filho e os amigos que aparecem para os almoços de domingo. (Nunca foram tão importantes os almoços de domingo).

Gosto, sempre que passo pela sala, de ver o desarranjo harmonioso das maçãs, ameixas, goiabas, mangas e bananas recostadas no rochedo do melão, descansando à sombra de um abacaxi. Às vezes paro diante do meu pequeno oásis de fibras e vitamina C e fico admirando-o, orgulhoso, como se fosse o símbolo de qualquer coisa que não sei bem o que é.

Minto. Sei o que é. Quando eu tinha uns dezesseis anos meu amigo Paulo —meu compadre, meu irmão— dizia que eu era “contra os adultos”. Verdade. Aos meus olhos adolescentes, para além dos trinta só havia hipocrisia e acomodação, crediário de geladeira, chinelo com meia, “é pavê ou pacomê?!”. Agora, ao ver meu filho no colo, pasmo diante de uma fruta do conde, “Parece um dinossauro!”, penso diferente. Casei com a mulher que eu amo —e, absurda coincidência cósmica, parece me amar também. Trabalho com o que gosto. Recebo um salário. Ponho frutas na fruteira. Vejo os meus filhos se transformando lentamente neles mesmos e aos domingos os amigos aparecem para almoçar.

É bom ser adulto. Eis o que me diz a gamela de 50 cm de diâmetro por 9 cm de altura, esculpida num compensado de cedro naval e sumaúma, sólida e delicada e generosa —nos dias de feira, no finzinho da tarde, se chegarmos bem perto e fizermos bastante silêncio, dá pra ouvir lá do fundo, entre as bananas e o abacaxi: “Aiaiiii, aiaiiiii, é o canto do pregoneiro/ Que com sua harmonia/ Traz alegria/ In South American way”. (Hoje soam como versos um reino distante, há muitos e muitos anos. Digamos: Brasil, 2010).

A fruteira foi presente de casamento do Cesarino e da Ana, pais do Dinho, outro amigo do peito. Foi feita pela Julia, irmã do Dinho. Nos anos 90, passei muitos réveillons com eles, em Ubatuba. Tinha também a Beatriz, prima do Rio por quem fui apaixonado durante décadas, entre os 13 e os 15. À 0:01 do dia primeiro de janeiro de 1991 a Beatriz me chamou para pular as sete ondinhas e eu, bocó, falei que já tinha pulado. Só lá por julho fui entender que não era bem para pular ondinhas que ela havia me convidado. À 0:01 do dia primeiro de janeiro de 1992 retribuí o convite, mas já era tarde e ela não queria mais saber de compartilhar desejos comigo.

Tenho pensado muito no passado, ultimamente. No que fiz até aqui. No que ando fazendo. Como nesses livros de autoajuda em que a pessoa adoece e é tomada por uma epifania, enxergo os contornos do dia a dia com aflitiva nitidez. Tenho revisitado poetas, aberto gavetas, dado telefonemas; na sexta chorei ao abraçar meus filhos. “É de felicidade, papai?”, me pergunta a mais velha. Ela tem cinco anos, é muito pequena para compreender o que se passa (eu também, aos 41, me sinto pequeno diante do que se passa), então eu resumo: é.

Tenho essa família, esses amigos, essas memórias, esses poemas, essa fruteira no centro da mesa, no centro da sala, no centro da casa: a luz entra por todos os lados. (A sombra do fascismo está nas ruas, qualquer que seja o resultado das eleições, a sombra crescerá. Lutaremos incessantemente pelo respeito à lei —e, não menos importante, pelos almoços de domingo).

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