Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

O fim da picada

O trouxa não vê o malandro, mas o malandro sente a léguas o cheiro do trouxa

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Com a idade, a gente tem que admitir nossos defeitos. Como dizem em brigas online: aceita que dói menos. Eu sou trouxa. Não sou burro, sou inteligente, mas trouxa. São coisas diferentes.

Eu li Nietzsche e entendi, mas caio em golpe. Tem a ver com certa ingenuidade, somada a uma necessidade infantil de agradar. Tô tratando na análise. Faz 30 anos. (Estarei sendo mantido na neurose por um analista malandro que só quer o meu dinheiro?).

Vai saber. O trouxa não vê o malandro, mas o malandro sente a léguas o cheiro do trouxa. Em Copacabana pago R$ 15 numa empada e não tenho nem coragem de admitir quanto sai o táxi dali até o Arpoador. Faço contato visual com hare-krishna e ouço o evangelho indiano por duas horas e meia, até conseguir encerrar o papo comprando todo o estoque daqueles livrinhos amarfanhados com cheiro de patchouli.

No último fim de semana, fui engambelado por um corretor. Não, não comprei um lote do Pão de Açúcar. O golpe foi mais sutil. Fomos ver um terreno em Gonçalves, Minas Gerais: o corretor, eu, minha mulher, Julia, e meus filhos, Olivia e Daniel.

Paramos o carro diante da mata fechada. O corretor, de máscara, a dois metros de distância, vestido como um Indiana Jones e com a segurança de todo trapaceiro, anunciou: “Vamos aqui por essa trilha”. Não havia trilha.

Ilustração de busto de pessoa vestindo uma camisa preta. Uma forma branca, que parece uma fumaça, cobre tudo o que há desde a gola da camiseta até a cabeça
Adams Carvalho/Folhapress

Eu disse que o golpe era sutil. O corretor precisava nos mostrar um terreno enorme na mata virgem e para tanto fingiu, enquanto nos arranhávamos em espinhos e nos enrolávamos em cipós, que caminhávamos pelas aleias do Jardim Botânico.

Olivia, de sete anos, foi a primeira a perceber o engodo. Como a criança da fábula que grita “o rei tá nu!”, constatou: “Papai, aqui não tem trilha”. Seria tão absurdo alguém nos fazer seguir uma trilha inexistente que meu cérebro de trouxa me fez seguir a trilha inexistente. “Claro que tem, Olivia, olha aqui”.

Daniel, de cinco, com o mato batendo na testa, veio em apoio à irmã: “Isso não é uma trilha, papai, é só o mato que o moço pisou”. Eu, com a obstinação dos idiotas, os reprimi: “Gente, não reclama! Vamos ver o terreno!”.

Julia me conhece e sabe que, diante das injustiças do mundo, não pode contar comigo. Um cara fura a fila do cinema bem na nossa frente. Ela gostaria que eu brigasse com o cara, mas eu não brigo porque tenho medo de apanhar. (Como disse meu amigo e mestre Reinaldo Moraes: “É mais fácil engolir o orgulho do que os próprios dentes”).

Por uns anos a Julia brigava comigo por não brigar com as pessoas, até que desistiu e passou a brigar ela mesma.

Toda arranhada após atravessarmos um arbusto de coroa-de-cristo, ela gritou pro corretor: “Ei! Qual é o caminho?!”. O corretor, tranquilão, apontou um ponto na vegetação cerrada e disse: “Esse!”.

Julia olhou pra mim e decretou: “Eu não vou”. Olivia e Dani imediatamente se aproximaram dela e pegaram um em cada mão, deixando claro de quem seria a guarda naquele breve divórcio.

Enquanto minha família tomava picolé na cidade, eu perambulava de bermuda e chinelo por quilômetros no meio da selva. Minha sorte foi o pé picado pela cobra coral ser rapidamente devorado por uma onça, não dando ao veneno tempo de circular. (A hemorragia estancou imediatamente quando comecei a afundar na areia movediça).

Comprei o terreno por um preço ótimo —segundo o corretor. Gente fina, o cara. Só esqueceu de levar os documentos, mas jurou que estava tudo certinho e prometeu mandar por e-mail até esta sexta.

Estranhamente, o e-mail ainda não chegou e ele não atende o telefone —detalhes que, obviamente, a Julia não precisa ficar sabendo.

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