Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Xarope não combate fascismo

Quando me deparo com uma caricatura das lutas identitárias, quero chorar

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A mãe posta a foto do filho surfando e a legenda “Amo infinitamente”, mais um emoji de coração. Peço que façam um exercício. Parem de ler. Fechem os olhos. Mentalizem o post: uma criança surfando e uma mãe dizendo que a ama. Agora, procurem encontrar nisso algo de ofensivo ou socialmente condenável.

Conseguiram? Imagino que não. Mas como vivemos sob a implacável “Lei de Trouble” e não se bebe mais um copo d’água sem que alguém se ofenda (“e os sedentos do Saara?! E os náufragos?!”), um sujeito encontrou como encrencar. Tascou no post da mãe feliz com sua bela cria um textão dizendo que a mulher deveria tomar cuidado pois estava, sem perceber, sendo uma adepta da “ideologia do familismo”, que “tem gerado muita opressão e sofrimento, principalmente na população LGBTQIA+” (...), “que leva ao adoecimento, quando não ao suicídio, milhares de pessoas”.

Ilustração de criança surfando com balões de fala com X dentro sob a imagem.
Ilustração - Adams Carvalho/Folhapress

Meu Deus! Há anos posto fotos dos meus filhos e meus amigos e amigas LGBTQIA+ nunca me alertaram que ao ver a Oli assoprando velas no aniversário de três anos sentiam náuseas, pontadas e comichões. Nem que ao ver o Dani vestido de pirata no Carnaval eram tomados por ideias suicidas.

Antes que eu saísse deletando minhas redes sociais, lembrei de amigos gays, homens e mulheres, que têm filhos e também postam a torto e a direito. Seriam estes meus amigos e amigas tão oprimidos pela terrível “ideologia familista” que nem sequer percebem estar prestando um serviço à heteronormatividade? Haverá correntes da extrema burrice contra gays ou trans terem filhos pois assim estão reforçando os pilares do patriarcado?

Cada vez que me deparo com uma dessas caricaturas das lutas identitárias, sinto vontade de chorar, pois um idiota desses atrapalha lutas sérias. Movimentos sociais que tão fazendo cursinho comunitário pra jovens negros na periferia. Mulheres que combatem agressões e feminicídio. Índios que se organizam para não serem assassinados por garimpeiros apoiados pelo governo federal.

Tem gente lá na cracolândia, todo dia, tentando levar cobertor, comida e um fiapo de esperança pra quem tá literalmente na sarjeta. Sem falar nos milhões de brasileiras e brasileiros que simplesmente lutam para sobreviver à pobreza, ao tráfico, à milícia, à polícia.

Os grandes problemas do Brasil não são, evidentemente, como quer fazer crer a extrema direita, os “exageros” dos movimentos identitários, a “ditadura do politicamente correto”. Não existe, é claro, um complô comunista para acabar com a família, sexualizar crianças, viciar adolescentes. Esses são delírios ou mentiras do evangelismo tosco dos terraplanistas ora no poder.

Os grandes problemas do Brasil são a desigualdade, a injustiça, o racismo, o machismo, a homofobia e só vamos sair dessa —se sairmos— com um discurso e ações racionais, inteligentes, não com desvairados como o fiscal de foto de filho. Este cretino é uma minoria da esquerda, mas que ganha voz nas redes sociais e acaba virando um espantalho nas mãos da extrema direita, ajudando a reforçar uma imagem distorcida das pautas progressistas.

Antes que digam que não tenho lugar de fala pra opinar sobre luta identitária por ser branco, hétero e cis, discordo. Sou humorista, dediquei toda minha vida profissional à comédia e sei quando estou diante do ridículo. Ou a esquerda se levanta para separar as pautas e métodos importantes da xaropada mimimizenta de alguns dos seus espantalhos —que, infelizmente, não são poucos— ou vamos reeleger o Bolsonaro. Não precisa ser comediante pra saber que não será nada engraçado.

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