Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

DOI-Codi e O Rei Leão

Quando a onda destruidora estoura, Peppa Pig e habeas corpus giram juntos no mesmo caldo

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Em sua coluna mais recente, Marcelo Coelho fez alguns reparos ao meu texto do último domingo. Vou discuti-los aqui. Escrevo “discuti-los” e não “rebatê-los” porque desde 2013 não tenho muita certeza de nada e ouço as críticas com atenção, principalmente quando vêm de quem sabe mais do que eu. (Não é humildade, é instinto de sobrevivência).

“Prata diz que muitas pessoas acreditaram ‘que as democracias liberais, este nosso mundo com eleições, Netflix, cartão de crédito, Peppa Pig, politicamente correto, cross-fit, Carteira de Trabalho, McFlurry, habeas corpus, Fuvest e afins iria melhorar suas vidas, garantir seus direitos básicos e introduzi-las numa sociedade justa, onde todos teriam as mesmas oportunidades’. Simplesmente não entendo a razão de juntar eleições com Netflix, habeas corpus com Peppa Pig. Uma coisa é democracia, outra é sociedade de consumo neoliberal”.

Ilustração de quatro hienas em tons de verde com o fundo amarelo
Ilustração de Adams Carvalho para coluna de Antonio Prata de 11.jul.21 - Adams Carvalho/Folhapress

Verdade, a democracia antecede e —espero— sucederá a “sociedade de consumo neoliberal”, mas aos olhos do bolsonarismo tá tudo no mesmo cercadinho do crepúsculo: o Estado de direito, a “Globo Lixo”, o STF, a “Foice de São Paulo”, os direitos humanos, o “globalismo”, “a ideologia de gênero”, o “terra-globismo”, as vacinas, os desenhos animados —Damares combate histórias infantis com fadas, bruxas e duendes, pois são personagens pagãos.

Quando estoura a onda destruidora (temos que parar de chamar de conservador quem só trabalha com marreta e não sabe bater uma laje) Peppa Pig e habeas corpus giram juntos no mesmo caldo. Na visão delirante do neo-demolidorismo, eleições e Netflix são apenas diferentes instrumentos do complô mundial das esquerdas. Complô que, segundo os milhões que seguem QAnon, trabalha entre outras coisas para que políticos democratas e atores de Hollywood possam beber o sangue de criancinhas. (Não estou brincando, assistam ao doc “QAnon: into the storm”, na HBO)

Sei que a maioria dos que votaram no Bolsonaro ou Trump não acha que a terra seja plana ou que o Brad Pitt e a Hilary Clinton comam bebês assados, mas endossa o discurso de quem acha. Olavo de Carvalho já flertou com o terraplanismo e nas manifestações bolsonaristas têm surgido cartazes com o enorme Q de QAnon.

Na minha coluna, levanto a hipótese de que a razão principal para 55% do eleitorado brasileiro ter embarcado nesta loucura foi a incompetência do nosso “sistema” —essa maçaroca simbólica e institucional que vai de Montesquieu a Peppa Pig— em melhorar a vida dos pobres. Marcelo questiona: “Será que vem dos pobres a maior ameaça ao sistema democrático? Quando vejo manifestantes a favor de Bolsonaro, o que reconheço são fanáticos de classe média. Contra a democracia, de forma militante e histérica, estão alguns donos de redes varejistas. Sustentando Bolsonaro, o máximo que der, está o pessoal do mercado financeiro.”

O apoio da elite é condição necessária, mas não é suficiente. Tampouco a classe média é tão numerosa para eleger um presidente. Segundo o último Datafolha antes do segundo turno de 2018 Bolsonaro tinha quase o mesmo desempenho nos lares com renda entre de dois a cinco salários mínimos (64%) e nos que recebiam acima de dez (66%).

Os paupérrimos preferiam Haddad, mas os pobres e remediados ajudaram a eleger o capitão.

Parece-me que para sairmos deste mato sem cachorro precisamos aceitar que a maioria quis, sim, o Bolsonaro. Então, procurar as razões da tragédia. Do contrário, seguiremos neste mato sem cachorro, cercados por hienas —alguma coisa entre o DOI-Codi e O Rei Leão.

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