Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Descrição de chapéu LGBTQIA+ Twitter

Tiro no pé

Achar que só mulher pode falar sobre mulher, negro sobre negro, muçulmano sobre muçulmano, etc., é um retrocesso cultural, não um avanço

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Tempos atrás um amigo meu, escritor e professor de literatura, propôs a um centro cultural um curso sobre uma poeta italiana, pouco conhecida no Brasil. O diretor da instituição respondeu que não pegaria bem, hoje em dia, ele, homem, dar um curso sobre uma mulher. Como nenhuma professora jamais propôs dar aquele curso, perdemos todos: homens, mulheres e a poeta italiana.

Cotas são fundamentais. É preciso abrir espaços para quem esteve historicamente fora dos lugares de poder. Mas daí pra achar que só mulher pode falar sobre mulher, negro sobre negro, muçulmano sobre muçulmano, etc., é um retrocesso cultural, não um avanço.

Para piorar, algumas pessoas acham que se, "hoje em dia", os homens não devem falar sobre mulheres, tampouco deveriam falar sobre si próprios. Ano passado estreei uma peça chamada "Muito pelo Contrário", encenada pelo ator Emílio Orciollo Netto. É a história de um casal cujo filho nasce no dia em que o governador decretou a quarentena em São Paulo. O monólogo discute as dificuldades deste casamento, do ponto de vista do marido.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 19 de Agosto de 2023, mostra o desenho de um homem vestindo um brilhante capacete de astronauta, semelhante à uma redoma de vidro, em uma paisagem abstrata.
Adams Carvalho

Um produtor leu a peça, disse que havia gostado muito, mas achava que "não era a hora" de produzir um espetáculo sob a perspectiva de um "homem-branco-hétero-cis". Eu fiquei atônito. Em primeiro lugar, a qualidade de uma obra de arte independe de ela ser criada por uma nazista (Leni Riefenstahl), por um pedófilo (Michael Jackson) ou um stalinista (Jorge Amado). O mundo ficaria melhor se Michael Jackson tivesse sido preso, mas empobrece se pararmos de ouvir "Beat it".

Em segundo –e mais importante–, se estamos, felizmente, num momento de luta feminista, antirracista e por direitos LGBTQIA+, qualquer obra que ilumine o homem-branco-hétero-cis é de grande valia. Imagina se, hoje, os Estados Unidos e a China acharem que "não é a hora de estudar" um ao outro? Quanto mais se souber sobre o "inimigo", melhor se prepara para a luta. Além disso, a peça é sobre um "homem-branco-hétero-cis" em crise com o modelo atual de masculinidade: alguém tem dúvida de que para o avanço das pautas identitárias é fundamental mudar a forma como os homens se enxergam e se comportam? Ou a ideia é que mulheres, negros e LGBTQIA+ conquistem os espaços que merecem e os "homens-brancos-hétero-cis" sejam enviados para o Alaska?

Não estou aqui tomando a típica posição da direita, que subverte a realidade para dizer que os movimentos identitários oprimem o "homem-branco-hétero-cis", coitadinho, que não aguenta mais viver sob os grilhões do "marxismo cultural" e da "ideologia de gênero". Meu amigo escritor vai muito bem, obrigado. Minha peça foi posta de pé por duas super produtoras, eu tô aqui com meu espaço, produzindo, publicando, indo comer pizza com meus filhotes aos domingos.

Eu me preocupo é com o mundo. Esta piração de uma parte minoritária e xarope da luta identitária afasta não só o cidadão médio, a quem é preciso trazer para o campo progressista, mas atrapalha a luta feminista, antirracista e pelos direitos LGBTQIA+, que se compartimentam e se isolam, em vez de agregar.

Já vejo a crítica no Twitter: "ah, lá vai o 'homem-branco-hétero-cis' querer dizer às minorias como elas devem lutar". Gente: não importa de onde vêm as ideias, importa é se elas funcionam. Caso a China entre em guerra com os EUA, tenho certeza de que os Estados Unidos revidarão à bala, mesmo que os chineses tenham inventado a pólvora.

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