Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Calvário

'Quando irás resolver o problema dos carecas?!', e a ciência calou-se, humilhada

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Eis então que a ciência, no início do século 20, vendo a multidão diante de si, anunciou: "Bem-aventurados os que sofrem, pois deles será o reino dos céus; a eles darei a morfina, a dolantina, a codeína e todo analgésico que tira a dor. Bem-aventurados os infectados, os bexiguentos e perebentos, pois a eles darei a penicilina, a amoxicilina, a tetraciclina e outros antibióticos que hão de matar suas pragas e amainar suas chagas. Bem-aventurados os que, sem objetivos reprodutivos, dedicam-se ao doce esporte do amor, pois deles serão a pílula anticoncepcional, o DIU e a 'Jontex pele com pele', que, unindo os corpos, separarão a prole do prazer".

E, vendo a ciência que mais gente se ajuntava, continuou: "Bem-aventurados os impotentes, seja por causa física ou psicológica, por excesso de admiração ou de Aperol, pois a eles darei o sildenafil, o tadalafil, o vardenafil e outros facilitadores do estado viril".

E disse ainda: "Bem-aventurados os gordos, pois a eles darei o Ozempic, com o qual tanto o rico quanto o camelo passarão pelo buraco de uma agulha.". E como todos aplaudissem, contentes, a ciência regozijou-se, cheia de si.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 07 de Janeiro de 2024, mostra o desenho de um homem careca, baseado em um esboço intitulado "A expressão de um homem urrando", do pintor italiano Leonardo da Vinci; a imagem também foi utilizada como capa do álbum "Cabeça Dinossauro" da banda brasileira Titãs.
Adams Carvalho

Mas eis que, do meio dos anestesiados e dos desinfectados, dos prevenidos, dos eretos e dos afinados, surge uma voz: "E nós, ó, pródiga musa?! O que tens a dizer a nós que há tantas décadas esperamos de ti não apenas um consolo, mas uma solução?!".

Então, da multidão jubilosa desponta um cocuruto lustroso, no qual a luz do sol se reflete, cegando a todos e os impedindo de discernir: seria o Alexandre de Moraes? O Esperidião Amim? O Zinédine Zidane? Ou Marcelo Tas?

Pois, com o dedo em riste, como se uma pequena pipa-losango-azul aos céus elevasse sua rija indignação, inquire a glabra criatura: "Quando irás resolver o problema dos carecas?!". E a ciência calou-se, humilhada.

Tá, tá, beleza, tem a finasterida e o minoxidil, mas é pouco. Falo "ex cathedra" (embora preferisse falar "ex-careca"): usei os dois remédios, por anos. Diminuem a velocidade do desmatamento, mas são incapazes de reflorestar a terra arrasada. A finasterida ainda tem a questão do efeito colateral: 1% dos pacientes sentem perda da libido.

Felizmente, não rolou comigo —minhas eventuais brochadas, sinto, sempre foram 100% orgânicas. Mesmo que não fossem, pensa: enquanto a brochada é um desconforto diante de uma pessoa só, entrar careca no Maracanã é exibir a sua impotência capilar diante de 50 mil. O que te parece pior?

Foram décadas de finasterida. Comparando minhas entradas às de alguns tios —fiquem tranquilos, não vou citar nomes, Jorge, André e Gutão— acho que funcionou razoavelmente bem. Seguramos a devastação da minha amazônia capilar antes daqueles 15% ou 20% em que se iniciaria o irreversível processo de savanização. (Tenho amigos que, se tirarem o boné, exibem manadas de zebras, dois ou três eco-resorts com turistas australianos, gnus parindo seus filhotinhos).

Podem dizer que reclamo de barriga cheia, não só por me restar bastante cabelo, mas porque estou acima do peso —quem sabe não seja o caso de um Ozempic?

Mesmo assim, sinto que tenho lugar de calva, quer dizer, de fala —dois lugares, aliás, uns seis centímetros quadrados nos ângulos direito e esquerdo da minha testa. Pois, como representante legítimo dos, digamos, "capilocarentes", exijo da indústria farmacêutica maior atenção à categoria.

Parafraseando um dos maiores carecas da poesia brasileira: Ó, ciência, por que me abandonaste?/ se sabias que eu não era Deus/ se sabias que eu era calvo?// Mundo, mundo, vasto mundo/ se eu me chamasse Raimundo/ não teria mais cabelo/ não seria uma solução// Mundo, mundo, vasto mundo/ Cogito um implante, então?

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