Com a Covid, nosso avanço científico permitiu um feito inédito: vacinas desenvolvidas no primeiro ano da pandemia, graças a tecnologias rapidamente convertidas.
Vacinas de vírus inativado, como a Coronavac e a Covaxin, usam uma técnica desenvolvida nos EUA para vacinar os soldados da Segunda Guerra Mundial contra a gripe. As vacinas de vetor viral, como a de Oxford, a Sputnik V e a da Janssen, adaptaram uma técnica em uso desde 2019 para a vacinação contra o vírus ebola. E as vacinas de RNA como a Pfizer vinham sendo desenvolvidas desde 2010 e debutaram contra a Covid. Com esse rol de possibilidades e a mobilização mundial, caminhamos para o controle da pandemia na base da imunização. Mas como as pandemias passadas acabaram antes dessa solução?
Nós temos várias evidências de pandemias anteriores, e a história que contam não pode ser ignorada.
Por volta de 8% do nosso genoma é formado de vírus que foram incorporados ao nosso DNA, vírus que encontramos ao longo da nossa evolução que acabaram incorporados permanentemente ao genoma humano. São fósseis genéticos de infecções passadas. E uma comparação de outro registro genômico pode explicar como eles foram embora. Comparando os genes que interagem com os coronavírus, pesquisadores da Austrália e dos EUA encontraram um fenômeno marcante. Justamente no oeste da Ásia, onde surgiram os coronavírus mais recentes como os causadores da Sars e da Covid, eles encontraram evidências de uma forte seleção evolutiva de grupos desses genes há 20 mil anos. Um sinal de que os coronavírus já causavam doenças há milhares de anos e que foram capazes de extinguir quem não tinha a combinação genética encontrada atualmente na região.
Há 20 mil anos não tínhamos a agricultura. Vivíamos em grupos muito menores e mais espalhados. Quando alguns desses grupos encontravam uma nova doença infecciosa, ela matava os vulneráveis. São as marcas dessa batalha que vemos no nosso genoma. Esse é o fim de uma “imunidade de rebanho” induzida pela doença natural em um grupo pequeno e isolado. Com a agricultura, passamos a viver em agrupamentos fixos com milhares ou milhões de pessoas. Em populações desse tamanho, é muito mais difícil uma doença infecciosa esgotar os vulneráveis. Isso pode até acontecer, como foi o caso da peste bubônica, mas depois de varrer o continente europeu por séculos em ondas epidêmicas antes de desaparecer. Uma delas, no século 14, matou mais de um terço dos europeus.
O mais comum entre doenças infecciosas recentes é elas se tornarem endêmicas, membros permanentes da humanidade. Várias pinturas e esculturas egípcias com milhares de anos registram pessoas com membros atrofiados que lembram muito a síndrome pós-pólio, a paralisia que atinge quem teve poliomielite. O sarampo trazido por europeus deve ter ceifado milhões de nativos das Américas no século 16. São doenças infecciosas contra as quais desenvolvemos imunidade protetora, mas que ainda persistem por milênios. Só não causam mais mortes graças à vacinação infantil, que protege os pequenos humanos suscetíveis que nascem todos os anos.
A Covid é mais uma doença infecciosa que encontra uma espécie urbana, com mais de 7 bilhões de membros capazes de cruzar o mundo em um dia. Ela não vai embora sozinha, como a gripe, o sarampo e a pólio não foram. Como essas doenças nos ensinam, precisaremos das vacinas e de novos hábitos para conter o vírus.
Souilmi, Y., Lauterbur, M. E., Tobler, R., Huber, C. D., Johar, A. S., & Enard, D. (2021). An ancient viral epidemic involving host coronavirus interacting genes more than 20,000 years ago in East Asia. bioRxiv, 2020-11.
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