Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho

A obra é política, mas não se reduz à identidade ou ao lugar do autor

'Nas páginas da melhor literatura, a força do ódio se converte em alargamento dos sentidos'

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Ouvi recentemente, de um jovem escritor, que a literatura é um antídoto contra o ódio (e contra o discurso de ódio). Seria bonito, se o ódio, assim como a raiva e a cólera (mas também o amor e o desejo), não fosse motor da literatura.

Público participa da Flip 2018, em Paraty (RJ)
Público participa da Flip 2018, em Paraty (RJ) - Keiny Andrade/Folhapress

O que o moralismo canhestro de nossos dias não pode conceber é que haja uma diferença entre o discurso de ódio reprodutor de preconceito, empobrecedor dos sentidos e das relações sociais, e a potência corrosiva e explosiva do ódio na literatura. Neste caso, o efeito é inverso ao estreitamento que, na sua confusão, a burrice bem-intencionada diz combater, mas no fundo promove.

Nas páginas da melhor literatura, a força do ódio se converte em alargamento dos sentidos, contra o lugar-comum. Exemplos não faltam, de Céline a Thomas Bernhard.

Num momento em que a política institucional está cada vez mais associada à impostura, algumas iniciativas nem sempre visíveis procuram resistir e preservar, tanto na ficção como no ensaio crítico, a radicalidade política potencial da literatura.

Para essas iniciativas, a literatura é um ato político em si, que não pode ser reduzido a simples medida representativa da expressão do autor e de seu lugar na sociedade. E que tampouco tem a ganhar com a adequação às normas discursivas do seu tempo —mesmo às que em princípio parecem muito bem-intencionadas, como as tentativas de converter o chamado "lugar de fala" em paradigma literário.

Há uma dinâmica própria da literatura que faz com que suas formas políticas mais radicais estejam do lado do inadequado, do que contradiz os modelos consensuais de seu tempo.

Dois livrinhos recentes exploram essa via, cada um a sua maneira: "Ultra-Proust" (editora La Fabrique), de Nathalie Quintane, e "The Adventure" (a aventura, editora The Mit Press), tradução americana de um ensaio de Giorgio Agamben publicado originalmente em 2015.

A graça do livro de Quintane, escritora autoproclamada de ultraesquerda, vem da sua militância radical, que se estende à leitura de uma figura canônica como Proust.

A autora reivindica para Proust o lugar revolucionário de antagonista dos paradigmas literários dominantes de seu tempo. A começar pela herança crítica de Sainte-Beuve, que supunha uma correspondência imediata e tola entre autor e obra (a obra explicada e compreendida pela vida, o caráter e a índole do autor), correspondência que o paradigma do "lugar de fala" acaba atualizando inadvertidamente, ainda que sob uma aparência mais combativa, ao ser aplicado à literatura.

Proust propõe um ruído entre esses dois elementos heterogêneos (autor e obra), ligados por laços estreitos e complexos. A obra é sempre política, claro, não está desconectada do mundo, mas essa política não se reduz à identidade ou ao lugar do autor.

O ruído criado por Proust é um livro imenso, movediço, inclassificável, que se reinventa a todo momento, indeciso no tempo verbal predominante (o imperfeito) e no vaivém das frases construídas por correção e contradição incessantes, em espiral e em abismo.

É aí que está sua política: na inquietação, na instabilidade e na suspensão das definições peremptórias, das certezas dos rótulos e das identidades fixas. Um "não" àquilo que seu tempo dá por certo.

A incompatibilidade com as normas de seu tempo é também o que dá força e originalidade ao pequeno ensaio de Agamben sobre a potência da "aventura", esse anacronismo medieval rebaixado e desprezado pela modernidade.

A duplicidade semântica do termo "trovador" (ao mesmo tempo cavaleiro e poeta, aquele que busca mas também aquele que compõe) aponta para uma coincidência entre experiência e texto: a aventura do cavaleiro é a mesma do poeta. O duplo sentido de "aventura" (acontecimento e conto) corrobora essa indeterminação. Experiência e representação convergem e se confundem, são indissociáveis.

O sujeito não precede o texto que apenas o representaria; ele passa a existir na aventura, ao abraçar seus demônios (o desejo e o acaso), na convergência da objetividade do que lhe sucede e da subjetividade da sua narração.

Percival só ganha nome no final do relato de sua aventura. Sua identidade nasce com o ato literário. É a língua que cria a ocasião e o acontecimento no qual os dois elementos indissociáveis da aventura —experiência e relato— podem enfim se manifestar. A fala cria o lugar. E não o inverso. É essa a radicalidade política da literatura. Seu potencial perturbador de rebeldia, singularidade e emancipação, e que parece cada vez mais difícil de entender.


Bernardo Carvalho é romancista e autor de "Nove Noites" e "Simpatia pelo Demônio".

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