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Que futuro pode ter a ficção literária no mundo da pós-verdade?

Na estreia da seção Perspectivas, Christian Schwartz analisa tendências do romance na atualidade

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Que futuro pode ter a ficção literária no mundo da pós-verdade?

Do ponto de vista do mercado editorial, a perspectiva de sobrevivência de escritoras e escritores pareceu mais sombria com o relatório divulgado no final do ano passado pelo Arts Council, do Reino Unido, que revelou queda de mais de um terço nas vendas de romances e livros de contos no país de 2010 a 2016.

A má notícia coincidiu com o lançamento da coletânea "Ética e Pós-Verdade" (Dublinense, 2017), na qual um dos ensaístas convidados, Julián Fuks, anuncia que vivemos "a era da pós-ficção". É um vaticínio cruel, particularmente direcionado ao romance, conforme deixa claro o subtítulo de seu texto: "Notas sobre a insuficiência da fabulação no romance contemporâneo".

O que passaram a fazer os romances, se deixaram de fabular? Para Fuks, autor do premiado "A Resistência" (Companhia das Letras, 2015), tornaram-se o último refúgio da... verdade.

julián fuks fala
O escritor Julián Fuks durante debate promovido pela Folha e pela Companhia das Letras - Mastrangelo Reino/Folhapress

"Eis então que a verdade que há tempos não goza de grande respeito e grande estima em tantos campos do conhecimento, a verdade que em nossa gerência diária das informações estaria caindo em descrédito", argumentou, "eis então que a verdade recupera nas obras literárias uma centralidade imprevista."

Isso, para a ficção, não é boa notícia, declara Fuks. Para ele, os "escritores e escritoras do presente" teriam aos poucos resvalado no atoleiro dos "enredos verdadeiros", pobres de fabulação se comparados aos supostamente "fartos enredos verossímeis" de outrora, quando ficcionistas "podiam tudo, podiam escrever seus livros com uma liberdade quase irrestrita, podiam conceber uma infinidade de nomes e sobrenomes e atribuí-los aos seus protagonistas".

Uma boa sessão de análise poderia vir em socorro de romancistas e contistas perdidos nessa encruzilhada. Não que precisem necessariamente deitar no divã. Ao contrário, seu lugar deve ser a cadeira do analista. (O frequente elogio a Freud como escritor de gênio —para alguns, um escritor melhor do que jamais foi como médico ou psicólogo— talvez sirva de inspiração.)

cadeiras em livraria
Salão de livraria em São Paulo - Alberto Rocha/Folhapress

Veja-se o que escreveu a psicanalista Vera Iaconelli, colunista da Folha, sobre a conveniência (ou não) de que o analista tenha passado por experiências semelhantes àquelas que o paciente pretende lhe contar —como um ficcionista que só pudesse trabalhar com personagens que o espelhassem.

"Quantas vidas um analista teria que ter vivido para poder escutar aquele que chega a seu consultório?", perguntou-se a colunista.

A resposta, óbvia, é que essas vidas não precisam ter sido vividas por quem, analista ou ficcionista, está ali para lhes dar forma e linguagem, por assim dizer. Na formulação de Iaconelli, "supor que o analista deva ser negro para atender negros ou ser lésbica para atender lésbicas é apostar na experiência pessoal do analista e confundir lugar de escuta com lugar de fala".

A literatura lida com pessoas, não com ideias —eis a máxima que cultiva um dos principais romancistas brasileiros, Cristovão Tezza, também colunista deste jornal e autor de uma consagrada narrativa autobiográfica, "O Filho Eterno" (Record, 2007).

Pois se alguma nuvem carregada há no horizonte da ficção, é justamente a de uma certa demanda identitária quanto a seus personagens. Decalcada das chamadas ações afirmativas, ela sugere um desejo de legislar (via crítica, sobretudo a universitária) acerca de quem são —sua etnia, seu gênero, sua classe— as pessoas com as quais o romance deve lidar preferencialmente.

Tal cobrança costuma vir associada à crítica, esta legítima, de que falta maior diversidade de autores no Brasil, por exemplo. O equívoco é achar que mais romancistas e contistas negras ou gays sejam garantia de mais personagens com essas identidades particulares —ou, pior, exigir isso de quem escreve.

Tezza diz que "a ética da ficção é necessariamente uma ética fundada estritamente sobre minha relação com os outros, que serão a medida inescapável do que eu escrevo, mesmo que meu objeto seja eu mesmo".

Enquanto ficcionistas de qualquer origem ou extração —se mais diversas, tanto melhor— forem capazes de ocupar o "lugar de escuta" e deixar o "lugar de fala" para seus personagens, mesmo os marcadamente autobiográficos, a ficção sobreviverá.

A morte do romance, desta vez por insuficiência fabular (ou excesso de realismo, talvez efeito colateral de uma era antes da pós-verdade que da pós-ficção?), fica novamente adiada —ainda que a ameaça de inanição comercial continue a rondar, implacável. 


Christian Schwartz, 42, pesquisador visitante na FGV e na Universidade Cambridge, é jornalista e tradutor.

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