Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Escritora lembra que natureza da escrita é depor contra si mesmo

Camila Sosa Villada funde a travesti e a autora e se apodera da literatura com originalidade excepcional

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Quando Camila Sosa Villada esteve na Flip, em 2022, quiseram saber sobre a escolha do nome. A pergunta estava inserida numa discussão política sobre a construção das identidades à qual a escritora argentina a princípio pareceu não corresponder. Respondeu simplesmente, sorrindo, que na época em que passou a se chamar Camila, estava em cartaz o filme "Camille Claudel", com Isabelle Adjani, e que ela queria ser uma mulher tão bonita quanto a atriz.

A resposta era honesta e desconcertante. Camila Sosa Villada é autora de uma obra guerreira e surpreendentemente política. Seu ensaio "A Viagem Inútil: Trans/escrita", recém-publicado pela Fósforo, apodera-se da literatura (e de sua atual vertente autobiográfica) com uma força, uma inteligência e uma originalidade excepcionais. A começar pela equivalência que propõe entre travesti e escritor.

Zanone Fraissat - 25.nov.22/Folhapress
A escritora Camila Sosa Villada participa de debate na Casa Folha na Flip 2022

Tornou-se um lugar-comum dizer que a literatura é democrática porque nos põe no lugar do outro. Nessa asserção mais inócua do que gostaríamos de admitir, tanto "literatura" como "democracia" —e sobretudo "outro"— são palavras-ônibus que querem dizer tudo e nada. O outro nunca será realmente outro enquanto for uma projeção daquilo que desejamos que ele seja. A associação entre escritor e travesti põe o pensamento positivo de pernas para o ar.

O que isso significa exatamente? Para começar, que não é preciso buscar o outro lá fora. O eu é o outro. Com isso Camila Sosa Villada não apenas ecoa uma das máximas da poesia moderna ocidental, mas a ilustra com a dimensão física, visceral e contraditória do seu próprio corpo.

Em seguida, o direito de mentir (ou de imaginar: escrever o que falta, o que não tem, o que não é), que na literatura se confunde com uma verdade cada vez mais incompreendida e vilipendiada pela afirmação de si e do que foi, supostamente mais verdadeira. Camila Sosa Villada lembra que a verdadeira natureza da escrita é a oposição: "Sempre teremos um inimigo, um lado reverso". Aí está o outro. O outro é a capacidade de escrever contra si mesmo.

Mentir é construir e desconstruir ao mesmo tempo, é a frente e o avesso: assumir que se mente já é desautorizar a verdade. A possibilidade e o direito de "mentir sem nenhum julgamento" têm a ver com a literatura não ser um tribunal, algo que hoje parece cada vez menos certo. No tribunal você jura dizer a verdade em nome de Deus ou do que for —o que nem por isso impede a manifestação da mentira, da hipocrisia e da dissimulação.

Camila Sosa Villada fala do risco de morte indistinguível da vida da travesti. A literatura para ela é um espaço de representação do risco. Tem a ver com a liberdade de experimentar e errar, com o desejo que é incontornável e incontrolável, e não jura verdade a ninguém nem a nada.

"Sempre é o desejo, o tempo todo. [...] Todas nós que nos arriscamos no desejo somos filhas de Marguerite Duras." Lendo Duras, ela compreende que "a vocação da escrita é fatal, que tudo pode ser perdido pela escrita, inclusive o amor-próprio". É o contrário do tribunal, onde ninguém em sã consciência vai depor contra si mesmo.

Ao fundir a travesti, a atriz e a escritora, Camila Sosa Villada pensa na literatura como ato performático que inclui também o "outro" que não pode ser escrito. "É tão lindo. É tão bom destruir o que está escrito, porque a gente tem a sensação de destruir a si mesma. Eu chamo isso de viagem inútil, o que está na cabeça e não pode ser escrito. A vida que não se escreve. [...] Escrever implica uma rebeldia, porque envolve reflexão. [...] É o que me faz duvidar da minha escrita. É o que me diz que nada está resolvido."

A associação da performance à escrita supõe ainda outra inversão: o jogo duplo da representação, de dar vida no palco ao que foi escrito. "Algumas coisas na minha vida começam a ser depois que foram escritas." Não antes. Não se entra na literatura sabendo algo, em busca de confirmação: a literatura é o meio e o espaço do descobrimento, não da reprodução.

Filha travesti de um mundo miserável que a rejeita, Camila Sosa Villada escapou à violência do pai alcoólatra que entretanto lhe deu a escrita; sobreviveu à pobreza em que vivia com a mãe que entretanto lhe deu a leitura; prostituiu-se. A "viagem inútil" é a recusa de servir e ser útil a essa cadeia produtiva, recusa de reproduzir.

"Um dia meus pais me levaram para a borda de um bosque." Lugar do desconhecido, da possibilidade da experiência e da invenção. "Nesse bosque eu fiz minha casa, escolhi meu túmulo, tive amores e sonhei com minhas reencarnações."

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