Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Extermínio de civis em Gaza é impostura para judeus e ataque a Israel

Espetáculo perturbador de coreógrafo israelense desestabiliza a normalidade de ataques contra palestinos

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Há dez anos, em julho de 2014, o coreógrafo e bailarino israelense Arkadi Zaides apresentou o solo "Arquivo" no programa oficial do festival de Avignon. Assisti ao espetáculo e escrevi sobre ele no mesmo dia em que, em meio à escalada do conflito entre Israel e o Hamas, o Libération publicou uma coluna de opinião do escritor israelense David Grossman, com o título "A direita não venceu apenas a esquerda, ela venceu Israel".

Grossman atribuía ao governo do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu a traição da própria razão de ser de Israel: "É revoltante a ideia de que a enorme potência militar de Israel não seja capaz de lhe insuflar coragem para vencer seu medo e seu desespero existenciais e dar um passo decisivo na direção da paz. A ideia essencial na origem da criação do Estado de Israel não era que o povo judeu retornaria ao seu lar e que aí não seria mais vítima de ninguém? Que nunca mais ficaríamos paralisados e sujeitos a forças superiores às nossas?".

"Pois vejam o espetáculo que apresentamos: o Estado mais forte da região, uma potência em escala regional, gozando do apoio quase incompreensível dos Estados Unidos e do compromisso da Alemanha, da Inglaterra e da França, ainda se considera, no fundo, uma vítima abandonada por todos. E continua se conduzindo como vítima: de seus medos, reais ou imaginários, dos horrores de sua história, dos erros de seus vizinhos e de seus inimigos."

Voltei a esse texto por curiosidade, querendo saber o que andaria fazendo Arkadi Zaides a propósito da guerra em Gaza. Zaides trabalha com dança documental. "Arquivo" me marcou para sempre. Sozinho em cena, assistindo junto com o público às imagens que, projetadas no fundo do palco, expõem a violência de colonos judeus contra palestinos nos territórios ocupados, o coreógrafo e bailarino de repente começa a imitar o movimento de seus compatriotas.

É um espetáculo perturbador. A princípio, Zaides hesita em emular os gestos da violência dos colonos. Pouco a pouco, entretanto, toma gosto na imitação convulsiva e mecânica. A repetição da violência sem sentido, fora de contexto, é insuportável. Alguns espectadores abandonam a sala revoltados.

Num mundo de inversões morais, onde a condenação da violência não tem outro efeito além de expor a paralisia de quem a condena, só a insistência na falta de sentido desses gestos reduzidos à repetição parece capaz de desestabilizar a normalidade dos ataques.

As imagens fazem parte do arquivo do centro de informação israelense pelos direitos humanos nos territórios ocupados (B’Tselem). A ONG entregou câmeras a palestinos para que gravassem o dia a dia da ocupação na Cisjordânia. Nas imagens, veem-se apenas colonos judeus cuja ofensiva revela a fúria, mas também o desespero e a loucura. Quando Zaides veio a São Paulo, em 2015, o cônsul de Israel fez o diabo para impedir a apresentação do espetáculo. Em vão.

O coreógrafo vive hoje na Europa. Seus projetos mais recentes dizem respeito a outras fronteiras, a imigrantes e refugiados mortos pelo caminho, a fenômenos cuja influência e ameaça escapam ao controle dos homens que os criaram, como a inteligência artificial, a energia nuclear e o aquecimento do planeta. Aí também ele parece tocar, ainda que de forma distante e alusiva, a inversão, a tragédia e o suicídio apontados por Grossman, só que agora em escala global.

Mais do que sinal de desespero na tentativa de passar uma imagem de força, o extermínio de civis em Gaza é uma impostura para os judeus porque é também um ataque a Israel. É o gesto mecânico e convulsivo da coreografia de Zaides.

O gesto de um governo que mantinha relações no mínimo ambíguas com o Hamas, além de ser aliado da extrema direita (sempre pronta a destruir a nação em nome de seus interesses, em qualquer tempo ou lugar) e avesso aos esforços de paz, mas incapaz de garantir a defesa de seu território e de seus cidadãos. E talvez seja o constrangimento desse gesto da vergonha que também faz de "Arquivo" um espetáculo insuportável.

É a conclusão de Amos Harel, especialista em questões de defesa, no Haaretz, depois de seis meses da brutalidade mais desenfreada e mais de 32 mil palestinos mortos: "Tínhamos a simpatia do mundo, por causa das atrocidades [do Hamas], e conseguimos perdê-la, pela maneira como conduzimos a guerra".

Será fácil reconquistá-la numa eventual escalada do conflito com o Irã. Mas será uma simpatia tão mais paradoxal quanto mais a sobrevivência desse governo depender do suicídio de Israel.

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