Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Descrição de chapéu Livros

Na literatura de W.G. Sebald, todo o mundo está fora do lugar

Escritor alemão dá sentido ao silêncio com personagens que pertencem ao que odeiam, não ao que os redime

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Em junho do ano passado, a Comédie de Genève cancelou, às vésperas da estreia, a adaptação teatral de "Os Emigrantes", de W.G. Sebald, com direção do polonês Krystian Lupa, um dos maiores nomes do teatro contemporâneo, depois de a equipe técnica acusá-lo de abuso psicológico e maus-tratos. Na sequência, sem a estrutura e o financiamento do teatro suíço, o Festival de Avignon, coprodutor do projeto, também cancelou a peça, que só agora estreia no teatro do Odéon, em Paris.

Lupa selecionou apenas duas das quatro histórias do livro. Ainda assim sua adaptação ficou com quatro horas e meia.

O escritor alemão W.G. Sebald - Divulgação

A primeira parte do espetáculo conta a história de Paul Bereyter, professor numa cidade do interior da Alemanha durante o nazismo, incapaz de ver o que acontece a sua volta mesmo depois de ser proibido de lecionar, e que só retrospectivamente vai entender que a mulher que ele poderia ter amado foi deportada e assassinada nos campos. A segunda é a história de Ambros Adelwarth, tio-avô do narrador, que se muda para os Estados Unidos no início do século 20 e se torna acompanhante (e provável amante) de um jovem herdeiro que morre louco.

A adaptação de Lupa me despertou a vontade de reler Sebald por uma razão específica. Nos seus livros, fotos e achados de segunda mão (um carnê de viagem atribuído pelo narrador ao tio-avô, por exemplo) são pretextos para a construção da ficção; mais que documentos, são a parte especulativa da ficção.

O que foi de outro torna-se seu, é incorporado à memória dos personagens. A ambiguidade e a migração dos sentidos entre o texto e as imagens permitem uma história que fala pelos silêncios, pelo não dito, ao mesmo tempo em rede e a contrapelo da asserção dos discursos coletivos.

Hoje todo o mundo reivindica um pertencimento (não necessariamente a uma história, que é dinâmica e fluida, mas a uma origem e a uma representação). É o efeito inevitável de uma perspectiva sociológica da literatura, para a qual um ser em contradição com o seu lugar, com a sua "origem", é no máximo uma aberração burguesa. É esse, porém, o dispositivo da literatura de Sebald. Todo o mundo está fora do lugar. O lugar certo é o errado. É o que põe os personagens e os sentidos em movimento. E os faz ver e dar a ver. Emigrantes.

Cada época é capaz de ler uma coisa. Entender uma coisa e não outra. O personagem em movimento é um sujeito intangível. Assim também o artista que se recusa a pertencer passa a ser visto como antagonista da justiça social, traidor da pátria, e deve, como tudo o mais, ser delimitado, posto em seu devido lugar de porta-voz, representante.

Por comparação à primeira leitura há mais de 20 anos, Sebald me parece hoje muito mais ficção do que ensaio ou documento, embora os três estejam entrelaçados (as fotos apropriadas como ilustração da narrativa continuam a documentar alguma coisa que se perdeu de ou sobre alguém que a rigor não sabemos quem é e que pode não ter nada a ver com a narrativa, embora a ilustre, ocupando sua "origem", agora vista como terreno capilar e movediço de associações).

Perder a memória é perder o eu. A narrativa de Sebald põe a origem em perspectiva e em dúvida por meio desse "disse que disse" de um narrador dentro de outro. Memória não é origem; é um processo dinâmico de constituição de um eu complexo. Em Sebald os personagens pertencem ao que odeiam, ao que os rejeita, não ao que os redime e emancipa. A origem é o ideal dos nacionalismos, do nazismo e do racismo. A memória é o seu antídoto no presente.

Muito já se falou sobre o silêncio no qual Sebald cresceu, silêncio em família para evitar o confronto com a história e com a culpa. A estratégia narrativa de sua ficção é confrontar o silêncio familiar com outro silêncio, que lhe é estranho (e aí entram as fotos de anônimos, de origem ambígua ou desconhecida, usadas como ilustração). O silêncio do que se perdeu ganha sentido pela ficção, fora do lugar.

As representações são o que uma época pode ver, o espelho onde ela se reconhece. Sebald tenta mostrar que o sentido (e a verdade) está no que não vemos, no que não reconhecemos. É a razão da ficção e de sua narrativa de silêncios, da ilustração do que não podemos saber nem confirmar, de quem não conhecemos. É um projeto literário sofisticado e potente.

Lupa diz ter tentado transpor esse silêncio para o teatro. Não sei se conseguiu, não vi o espetáculo. Quem viu, a julgar pelas críticas, diz que beira o insuportável. Talvez, involuntariamente, mais que o silêncio, ele tenha posto em cena o estorvo da representação.

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