Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Certas antipatias fazem a convivência jamais sair do ponto morto

Uma vez lhe dei boa noite e recebi um grunhido tão ríspido quanto o ronco do motor de um Chevette

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Tem gente que não se afasta um centímetro que seja da própria rota, a fim de agradar a alguém. Por mim, tranquilo. Desde que são Cristóvão, padroeiro dos motoristas, me deixe fora desse aplicativo de caronas. O problema é quando gente assim está com as chaves do seu carro.

Trata-se de uma categoria de antipáticos que escapa à tabela do Detran. Não é A, AAC, C, B, D ou E. Abrange todos aqueles que conduzem suas vidas de forma ofensiva, mas em específico o meu garagista roda presa.

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Publicada neste domingo, 22 de outubro de 2023 - Marcelo Martinez

Antes, porém, é preciso dar marcha a ré nessa história que começou há um ano, quando o consultório da minha psicanalista se mudou para um edifício com estacionamento rotativo.

Na época, pensei: "Que mão na roda!". Mas além de trocadilho péssimo, era o início de uma história de terror. Capaz de transformar "Christine, O Carro Assassino" num simpático Uber que oferece balinhas.

Sempre de cara feia, sem tirar os olhos da novela e incapaz de dar passagem a qualquer gentileza, o garagista é um cara jovem, com bateria social arriada.

Sua hostilidade vai de zero a cem em questão de segundos, basta um automóvel descer pela rampa. Certa vez lhe dei boa noite e recebi um grunhido tão ríspido quanto o ronco do motor de um Chevette.

Cheguei a cogitar que me tratava mal porque dirijo uma máquina que dorme na rua e vive encoberta por sereno, coisas que caem das árvores e de morcegos. Nada disso. Um dia cheguei com a lata velha tinindo, aromatizada com perfuminho de carro bebê. E só faltou me cuspir na cara.

Semanalmente aviltada, tentei catar vagas na rua. Fui de metrô, de táxi, gastei sola de sapato e fortunas na bandeira dois. Tarde da noite, a cidade me obrigando a buscar a segurança cruel do garagista.

A única vantagem desse confronto sem recuo, sem acostamento na angústia, é que já desço à garagem com a terapia e a paciência para seres humanos em dia. Tanto que, semana passada, tive um insight lacaniano. Era preciso dar o que eu não tinha àquele ogro automotivo que nada queria.

Ao entregar as chaves, me forcei a olhar nos olhos daquele marmanjo que poderia estar assistindo a "Velozes e Furiosos", mas preferia "Terra e Paixão". E lhe disse, bastante convencida: "Um dia você vai sorrir para mim". A resposta, claro, foi mais um ronco de Chevette.

No entanto, ao sair da última sessão, vi meu carro parado no melhor lugar da garagem. Já virado para a saída. As chaves sobre o para-brisa, ao lado de uma florzinha que poderia ter caído desapercebida de uma árvore da minha rua. Ou não.

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