Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Memórias póstumas de uma paixão mostram que amar é mesmo um refresco

Tudo começou com a inesperada sugestão do algoritmo do Facebook, que me apresentou aquele par de olhos verdes

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Marcello amou-me durante 15 dias e 11 moedas de chocolate. Seis filmes da "Sessão da Tarde". Um milk-shake. E incontáveis testes da revista Capricho. Memórias póstumas de uma paixão adolescente que eu julgava enterrada até ganhar um conjunto composto por uma jarra e seis copos com detalhes em ouro e mistério.

Na ilustração de Marcelo Martinez, um conjunto de jarra e copo de vidro, em estilo Art Noveau, com ornamentos em dourado
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 9 de outubro de 2023 - Folhapress

A culpa foi do Facebook, que passo meses sem frequentar. Evitando rostos conhecidos que tendem ressurgir fora de contexto, puxando assunto que há milênios não conecta mais ninguém. Desta vez, a sugestão de amizade do algoritmo me pegou desprevenida.

Desprovida de ranço. Reconheci naquele avatar calvo, de meia-idade, o mesmo par de olhos verdes que sorria junto com a boca na época em que éramos vizinhos. Eu com 14 anos, ele nessa mesma base. "Deseja adicionar o crush do passado?" E assim foi.

Aliás, cabe aqui o spoiler de que esta história não termina em encantamento retroativo e pegação em nome dos velhos tempos. Cada um de nós estava sossegado em seu próprio relacionamento. O que me calou fundo foi a confusão revisitada, a lembrança daquela sofrência juvenil, vulgo "primeiro amor".

Sístoles e diástoles frenéticas. Mãos úmidas. Boca seca. Vai ter língua? Vai. Vamos entalhar nossos nominhos numa árvore? Não. Angústias evoluindo com a ferocidade de mil "Pokemóns". Nunca mais amarei de novo. Acabou. Acabou tudo. Não, peraí. Começou um curso de férias. Hmmm.

Quem é aquele outro bonitinho ali? Atualizando nosso status de amigos virtuais, Marcello contou que morava em outra cidade. Estávamos definitivamente separados por esse abismo que é o espaço-tempo. Não tardou, no entanto, que piscasse uma mensagem com o oferecimento típico de quem conhece ou já me conheceu muito bem.

A caixa de papelão com a jarra e os copos atravessou centenas de quilômetros até chegar ao meu endereço, causando comoção. O conjunto havia pertencido à avó dele. "Quem deu foi um rapaz apaixonado pela minha nonna ainda bem novinha, antes de ela conhecer meu avô.

Nunca soubemos quem era esse rapaz, mas, se ela guardou por tanto tempo, devia significar muito."Pelo estilo, pelo estado, mas sobretudo pela idade que teria aquela avó italiana, me vi honrada diante de tão terno presente oferecido há mais de cem anos —e que agora chegava a mim.

Objetos são capazes de levar uma vida secreta e pujante, que perpetua até primeiros e efêmeros afetos, penso eu, toda vez que me sirvo de um refresco da jarra. O ouro dos copos refletindo amorosamente o sol.

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