Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Meus dias como a bandida mais procurada pelo Patrimônio Histórico

A especulação imobiliária acumula vítimas como um serial killer de pisos de caquinho e canteiros de espada-de-são-jorge

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Derrubar casa antiga para construir prédio feio deveria ser crime inafiançável. A cada dia, a especulação imobiliária faz mais e mais vítimas, feito serial killer de pisos de caquinho e canteiros de espada-de-são-jorge. No entanto, coube justamente a mim virar a bandida mais procurada pela polícia do Patrimônio Histórico.

Essa porta para a criminalidade sempre esteve aberta, diga-se de passagem. Desde que me conheço por gente, ando pelas cidades reparando em construções antigas. Catalogo mentalmente estuques, balaústres, telhados de duas ou mais águas. Eira por eira, beira por beira.

Quando imóveis do meu bairro entram em reforma, fotografo suas fachadas para fins satisfatórios de antes e depois. E se algum é posto abaixo para dar lugar a um trambolho espelhado, lanço uma prece silenciosa a Joseph Gire ou Oscar Niemeyer. Talvez aos irmãos MMM Roberto, a depender da ruína —art déco, eclético ou modernista. Depois, enxugo uma lagriminha.

Certo dia, passando pela rua Conde de Irajá, 63, em Botafogo, reparei num sobrado bastante peculiar. Fortemente vigiado por um segurança parrudo, de terno e gravata. Perguntei ao "man in black" em questão o que funcionava ali. "É o escritório-ateliê do sr. Sergio Rodrigues." E assim fui assuntar a belezura por dentro.

No cartum de Marcelo Martinez: um prisioneiro segura as barras da porta de sua cela na cadeia. Ele repara nos detalhes e comenta: Bela grade! Será Art Noveau?
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 20 de novembro de 2023 - Folhapress

Na época eu era recém-formada em jornalismo. Pé-rapada, mas boa o suficiente em matemática para saber que os belos e famosos móveis ali expostos custavam o preço de um rim meu, ainda em bom estado. De repente, eis que o próprio Sergio surge por trás de uma poltrona Mole. Ora, ora. O que fazer diante de um baluarte do design internacional, não é? Puxar o assunto que viria a ser meu atestado prévio de culpa.

"Nossa, suas peças são incríveis, mas assim, emolduradas por essas janelas… Essa porta, então. Que maravilha de porta!" O arquiteto riu, bonachão, e comentou ser muito apaixonado também. "Vim pra cá justamente por isso!"

Despedimo-nos. Saí toda pimpona, pois meu entusiasmo estético havia me apresentado àquele ídolo. Dono de um talento fantástico, mas de uma porta e janelas idem. Uma semana depois, manchetes de jornal: "Casarão na zona sul do Rio tem porta do século 19 furtada". Subtítulo: "Polícia investiga quem teria trancado o segurança e arrancado a relíquia que só cabe num caminhão".

De lá para cá, sou persona non grata em Pelotas, Olinda, Tiradentes, Salvador e demais localidades com sobrados exuberantes. Juro, não fui eu. Meu único crime?

Amar velharias demais.

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