Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu Todas

Todo mundo está fingindo não ver aquilo que, bem, ninguém enxerga mais

Vale tudo para driblar as retinas fatigadas, dos 'oclões' de sol multifocais a fingir que, ai, caiu um cisco no meu olho

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Apertou os olhos para ler isto aqui, já era. Aumentou o tamanho da fonte no celular achando que, imagina, coisinha pouca, ninguém repara nessas coisas: sinto muito. Os sinais são claros, só não vê quem não está vendo mais é nada.

Comigo também foi assim, de uma hora para outra. Não recebi qualquer aviso prévio, do tipo "cuidado aí, que a parada tá embaçando!". Pelo contrário. Eu, que até outro dia mesmo era jovem, acordei sem nenhum foco —e não do meu jeitinho habitualmente desatento. A vista pifou.

No cartum de Marcelo Martinez, sob o olhar do garçom, um homem, com vários pares de óculos empilhados sobre seu nariz e sua testa, se esforça para conseguir ler o valor da conta do restaurante
Ilustração de Marcelo Martinez - Folhapress

Olhando ao redor —não sem outra dificuldade, pois sou míope e vejo igualmente mal de longe, ó vida, ó azar— busquei apoio moral em meus contemporâneos. Catei por aí oclinhos e cordinhas de pendurar no pescoço. Ousei inclusive empregar aquela palavra inclemente, que vira e mexe cato no dicionário para confirmar se estou escrevendo certo. "Presbíopes, onde estão vocês?"

Não estão. Quer dizer: estar, estão. Porém fingindo não estar. Vizinhos, parentes, colegas de trabalho. Todo mundo tentando tapear a idade que pratica esse oftalmobullying, arriando as calças de nossa vaidade e enfiando o dedo em nossos globos oculares quarentões.

Vale tudo para driblar as tais retinas tão fatigadas. Dos "oclões" de sol multifocais, para ler dando o truque na praia, a fingir que, ai, caiu um cisco. "Então vai lendo isso aqui para mim enquanto eu pingo colírio". Mais engenhoso ainda é o alongamento de braço. Nível: a pessoa no Oiapoque e a bula de remédio, o rótulo de azeite, lá no Chuí.

Recentemente, peguei um amigo no flagra. De topete recém-implantado e tatuagem nova, performou aquela inclinadinha de cabeça falsamente descontraída, como quem não quer nada e enxerga idem. "Serginho, você tá usando lente pra perto?". E estava. Ruborizando da cabeça aos pés, confirmou que estava.

Nos tempos de escola e acuidade visual ainda perfeita, li "A Luneta Mágica", de Joaquim Manuel de Macedo, e nunca esqueci a história do solitário Simplício. Beirando a cegueira, ele comprava um monóculo fantástico que o fazia ver as pessoas com a nitidez até de seus medos e falhas de caráter.

Fora da literatura, verdades também são duras de se enxergar. E eu não quero ser tão rígida e inflexível quanto meu cristalino. Passado o impacto de me perceber duplamente quatro-olhos, encomendei minha própria arma —estilo gatinho.

Sacumé, envelhecer não passa de um contrato que assinamos com o tempo. Jamais houve escapatória, apenas esse detalhe extra. Escondido, ironicamente, nas letrinhas mais miúdas.

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