Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu Todas

As presuntadas e presepadas de tia Gladys, alter-ego de todos nós

Ela é do tipo que leva a parentada ao pileque, rodopiando em uma saia godê por entre esculturas de ovos de codorna

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Quem frequenta a minha casa e a dos meus amigos a conhece bem. Nos dias de festa, surge altiva e categórica. De luvas brancas e sapato de salto. Do tipo que pode ser arremessado para longe, quando ela for cantar "Babalu" em cima da mesa da sala.

No cartum de Marcelo Martinez: uma senhora idosa, sorrindo, traz para a sala uma bandeja coberta por cloche. Da cabeça da personagem sai um balão de pensamento com fotos de acepipes da década de 1960, como sanduíche de corte e mousses ornamentadas com camarões, azeitonas e abacaxis
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune - Folhapress

Mais do que uma pessoa, tia Gladys é um alter ego coletivo. Se a Vênus de Botticelli emergiu de uma concha no mar, essa personagem nasceu de uma poncheira que herdei da família. Afinal, onde houver a chance de reviver a moda do ponche, lá estaremos picando frutas e tacando uma bebidinha dentro.
A princípio era apenas um drinque suavezinho.

Do tipo que embalava o pileque de parentas em tardes de bolero na vitrola, deixando-as mais alegres e desquitadas do que o povo vai pensar. Com o tempo, descambou para um lifestyle completo, que exige acepipes condizentes.

Em seus magníficos salões —que cabem até num quarto e sala, fantasia não se mede por metro quadrado—, tia Gladys rodopia numa saia godê por entre esculturas monumentais de ovos de codorna. Barquinhas de maionese. Sacanagens e saladas de melão com presunto. Esfuziantes cascatas de camarão.

Avocado toasts, lobster rolls, tuiles, salmis, coulis e chips de qualquer coisa são barrados na porta sem dó. A bolsa dos incautos é revistada para garantir que ninguém chegue portando um falafel de beterraba ou bao. Por entre presuntadas e presepadas, tia Gladys nos faz ajoelhar com os estômagos voltados para a era de ouro do salpicão elegante.

Da alimentação risonha e franca, quando nenhuma artéria se sabia entupida por amor a arroz à piamontese. De sobremesa, vertemos lágrimas diante de mosaicos de gelatina, cassatas, manjares e crepes suzette. Aplaudimos fios de ovos por saber que nossas avós já eram baluartes da culinária molecular antes do Ferran Adrià nascer.

São iguarias que perderam seu hype, saíram dos cardápios dos restaurantes estrelados, mas seguem com o retrogosto maravilhoso dos nossos outros tempos, ambicionando o futuro.

Um dia, numa apoteose de ágar-ágar, ousaremos recriar a esquisitice "sci-fi" que era enfiar um peixe inteiro numa gelatina salgada. Nutris e musas fitness cuspirão em nossas caras, mas celebraremos o estrogonofe em sua magnitude histórica, desde o bate-entope dos czares.

Tia Gladys se dará por muito satisfeita. Altiva, mas de batom borrado, ela sempre se retira levando uma quentinha e uma certeza: tudo, menos servir só amendoim.

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