Bruno Gualano

É professor do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP. Também é autor de 'Bel, a Experimentadora'

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Atletas trans sob o olhar da ciência

Mulheres trans e cis competindo entre si é um dilema complexo

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A World Athletics anunciou medidas que endurecem a elegibilidade de mulheres trans no atletismo. As que passaram pela puberdade masculina –período no qual há uma explosão na produção de testosterona– ficam proibidas de participar de competições que contam para o ranking mundial. Sebastian Coe, presidente da organização, justifica a decisão "pelo princípio de proteger a categoria feminina". Atletas trans são uma ameaça ao esporte feminino?

Como a transição hormonal afeta o desempenho atlético não é uma dúvida trivial, ao contrário do que muitos imaginam. Um artigo recente revisou 24 estudos sobre o tema.

Os resultados, em conjunto, apontam que após quatro meses de tratamento hormonal mulheres trans reduzem seus níveis de hemoglobina –proteína transportadora de oxigênio essencial em provas longas– a valores vistos em mulheres cisgênero (as que se identificam com o sexo de nascimento).

Por outro lado, mulheres trans apresentam mais força e massa muscular do que seus pares cis mesmo após 36 meses da transição hormonal. Acredita-se que a exposição crônica à testosterona (antes da sua supressão terapêutica) imprima nos músculos uma espécie de "memória" de produção de força e hipertrofia, pronta para ser ativada mediante estímulo, como o do treinamento.

Ainda não sabemos por quanto tempo persistiria a tal memória muscular, em particular quando induzida pela puberdade masculina.

A atleta Laurel Hubbard, da Nova Zelândia, em ação durante as Olimpíadas de Tóquio, em 2021 - Edgard Garrido - 2.ago.21/Reuters

E, para além disso, principalmente, desconhecemos até que ponto adaptações fisiológicas pregressas à transição hormonal confeririam vantagens competitivas nas diferentes modalidades esportivas. A pretensa memória à testosterona é um fator entre uma miríade de outros (fisiológicos, físicos, psicológicos, cognitivos, nutricionais, genéticos etc.) que, em todas as suas combinações possíveis, poderiam influenciar o rendimento de uma atleta de elite.

Pessoas trans são pouco estudadas, em particular no contexto esportivo. A ciência, infelizmente, reflete e intensifica a marginalização social que aflige essa e outras minorias.

Diante da aridez de evidências, a competição de mulheres trans e cis em uma mesma categoria restou como um dos maiores dilemas enfrentados pelo esporte de elite. Isso seria possível somente se não fossem violadas a igualdade e a integridade da competição –algo que a ciência ainda não foi capaz de apurar.

Quem enxerga "militância identitária" em tudo está fadado a ignorar as genuínas dúvidas científicas que permeiam o tema, interditando o que seria um legítimo debate. Está criado o terreno para opiniões sem lastro na realidade.

Notem a paúra de que a inclusão de trans dizimaria o esporte feminino –argumento que embasa numerosos projetos de lei que tramitam nas esferas municipal, estadual e federal.

Agora examinemos o caso concreto dos Jogos Olímpicos do Rio, que teve em disputa 460 medalhas por 4.700 atletas femininas. Sendo que as mulheres trans perfazem aproximadamente 0,6% da população, esperar-se-ia a participação de cerca de 28 delas, com chances de amealharem ao menos 2 medalhas.

Fato é que nenhuma trans competiu no Rio. (A primeira e única trans olímpica foi a levantadora de peso neozelandesa Laurel Hubbard, que em Tóquio terminou na última colocação geral).

É cabível que a justiça competitiva seja o mote que emaranha a discussão de elegibilidade das trans no esporte de elite. Mas no esporte recreativo é a inclusão que deve ditar o jogo. Esse é, com efeito, o princípio norteador do novo consenso da Associação Atlética Universitária Nacional (EUA), que propõe diversas ações sistêmicas e estruturais focalizadas em educação, saúde e gestão para combater mitos e preconceitos da comunidade esportiva, garantido algum bem-estar ao atleta trans.

Em sociedades tomadas pelas violências da transfobia –modalidade inglória na qual o Brasil ocupa o topo do pódio–, a disputa das mulheres trans parece ser menos por medalha do que por visibilidade.

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