Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Uma despedida para Otavio

Ele era o exemplo de quem procura verdades sem recorrer a crenças

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

Sou obstinadamente fiel à imprensa escrita: meu dia começa com o jornal. Só entro na internet mais tarde. É por isso que soube da morte de Otavio pelas 9h de terça, quando recebi um zap que dizia: "Acho que você perdeu um amigo, então deixo um abraço aqui".

Abri a primeira página do UOL, para entender, e a notícia estava lá: "Morre aos 61 Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha". Verdade, eu tinha perdido um amigo —foi a primeira coisa que pensei.

Corri para desmarcar compromissos e chegar a tempo ao velório —como estou correndo agora, para escrever esta coluna imprevista, comovida e atrapalhada pelas lembranças.

Só no fim do velório eu soube realmente por que eu estava lá: foi quando os presentes na cerimônia, centenas, aplaudimos de pé, longamente, por minutos.

Pensei que o Otavio dramaturgo apreciaria esse aplauso. Pensei também que só uma outra vez eu participei de uma aplauso de despedida comparável, quando o corpo do meu pai foi levado ao cemitério de Lambrate, em Milão.

Pensei, enfim, que o aplauso de quem fica é a melhor recompensa por uma vida que não seja consolada pela fé.

Otavio, e aqui começo a explicar minha amizade, minha admiração e meu aplauso, era cético, filosófica e religiosamente. Desconfiava das certezas fáceis —mas nunca a ponto de não acreditar que existam fatos e verdades.

Desse ponto de vista, ele era (é ainda) o homem para esta época de boatos e falsas notícias que, na repetição e no grito, tentam impor "verdades" que são apenas crenças.

Como a maioria dos céticos, ele podia ser cínico (de maneira engraçada, irônica e autoirônica), mas nunca a ponto de não acreditar, por exemplo, que existam motivações humanas decentes —por raras que sejam.

Com frequência, o ceticismo é acusado de levar a gente para todo tipo de desistência: se não há certezas, se não há nada que mereça nossa crença, por que agir? Por que sair da cama de manhã? E como encarar fielmente nossas tarefas, como se esperássemos delas um futuro no qual não acreditamos? É possível ser cético ou cínico e agir no mundo? Ou, para agir, é preciso acalentar uma ilusão?

Otavio era, para mim, o exemplo de quem age no mundo dispensando ilusões. Ou, dá na mesma, de quem procura verdades sem recorrer a crenças.

Uma colega querida para quem me queixo da quantidade de meus afazeres (os quais todos eu escolhi), ultimamente, passou a zombar de mim, perguntando: mas você quer o quê? Ganhar o prêmio Nobel? É claro que não tenho essa ambição (além do mais, se a tivesse, eu seria um péssimo estrategista).

Mas o que ela parece supor é que eu multiplico meus afazeres por causa de alguma esperança, mais ou menos desmedida. Ou melhor, ela pensa que só uma esperança ou uma ilusão podem fazer com que a gente continue caminhando (eventualmente, contra o vento).

Mas Otavio provou o contrário. É possível não acreditar em salvação alguma (nem sequer acreditar que a gente possa transformar o mundo e torná-lo mais habitável), mas não por isso fugir de nossas tarefas: escrever uma peça, um ensaio, uma coluna ou dirigir o maior jornal do país.

Um poeta italiano, Vincenzo Cardarelli, escreveu este verso bonito: "Sono un cinico che ha fede in quel che fa" (sou um cínico que tem fé no que faz). E vale acrescentar: para fazer, nem é preciso acreditar no que a gente faz.

Muitos se lembrarão com razão da novidade, se não a revolução, que Otavio produziu no jornalismo brasileiro, inventando um jornal plural e diverso. De minhas conversas com ele ao longo dos últimos 25 anos, sobra-me uma ideia diferente do que seria ou poderia ser a diversidade.

A verdadeira diversidade das ideias estará presente (na nossa imprensa e no mundo) nem tanto quando as convicções diferentes terão toda liberdade para se expressar, mas quando todos os que expressam sua opinião tentarão "naturalmente" pensar além da opinião que eles expressam. Explico.

As opiniões são baratas, todas adotáveis sem muito esforço. Talvez por isso elas pareçam sempre um tanto vulgares.

Geralmente, quando elas se expressam, querem só ganhar acólitos. O mundo seria mais interessante se todos, ao expressarmos uma opinião, fôssemos levados a pensar além dela, ou seja, a explorar, junto com nossas razões, as razões de quem acredita na opinião oposta.

Um dia a gente chega lá.

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