Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

A família e a escola

Ambas formam e deformam jovens e é desejável que não concordem em tudo

Ilustração de Mariza Dias para Contardo Caligaris
Contardo Caligaris

Se você for estudante do ensino médio da Escola Móbile, uma das mais conceituadas de São Paulo, talvez, 15 dias atrás, você tenha recebido esta missiva (preservo a pontuação dos autores):

"Escrevemos esta carta para informar-lhes da pesquisa eleitoral que ocorrerá na Móbile, ao que tudo indica, no dia 21/09/2018." (nota de rodapé: o simulado das eleições foi cancelado). A carta segue:

"Como nas eleições de 2014, o próprio Levy Fidelix (crucificado pela esquerda e pela mídia) ganhou entre os alunos, pedimos sua ajuda para eleger em primeiro lugar este ano na escola Jair Messias Bolsonaro, com seu voto, independentemente de sua visão a respeito deste.

Entendemos que os professores da Móbile, em sua esmagadora maioria esquerdistas, precisam ser abalados e chocados pelos alunos que, como já dissemos, concordando ou não com o Capitão, não aguentam mais ser expostos a ideologia de esquerda e que o capitalismo ou qualquer outro pensamento que não o deles, é 'intolerante', 'elitista', 'fascista' e por aí vai"¦ É um recado que estará sendo dado.

Dia 21 na escola, é para mostrar aos alunos doutrinados, que tanto odeiam o candidato, que criaram o monstro que mais temiam: alunos que romperam com a lógica de que tudo aquilo que o professor expõe direta ou indiretamente é verdade absoluta.

Entendemos que votar no Bolsonaro (mais uma vez, concordando com este ou não), significa demonstrar toda a insatisfação contra este establishment, que impõe que o certo e bonito é acreditar nos ideais esquerdistas/socialistas, estes que como todos sabemos, são utopias absurdas que destruíram sociedades há mais de meio século, e tentam ainda destruir. Inclusive o nosso Brasil.

Confie, vai ser muito bom ver a cara de todos eles vendo o resultado e não podendo fazer nada. Vamos fazer acontecer."

É normal que alguns adolescentes militem em causas com as quais sequer concordam, só no intuito de apavorar seus professores. Aliás, o caso é tão trivial que não sei quais professores e adultos se apavorariam: nenhum aluno compra tudo o que o professor lhe apresenta como se fosse "verdade absoluta".

Mais surpreendente é a sensação de que os autores da missiva defendem um âmago de valores familiares contra o que é transmitido na escola.

A família e a escola são os maiores instrumentos de reprodução social: ambas instruem, formam e deformam os jovens; por isso mesmo, é desejável que elas não estejam sempre "concordando".

A discordância entre as duas cria um espaço de conflito em que o jovem pode inventar sua autonomia possível.

Enfim, assim era, até que um crescente narcisismo levou os pais a exigir que a escola ensinasse a mesma cartilha da família. Afinal, a classe média paga a escola: por que ela escolheria programa e ideologia?

Se a escola não tiver a função de apresentar conteúdos que entrem em conflito com as ideologias dominantes nas famílias, eis que a educação será apenas a reprodução do mesmo: tais pais, tais filhos.

A carta dos estudantes da Móbile me trouxe também uma outra reflexão.

Frequentei o ensino médio no começo dos anos 1960, em Milão, num colégio público.

Os professores eram quase todos centristas e liberais, em parte religiosos, em parte, não. Meu pai, agnóstico e anticlerical, poderia pedir minha exoneração da aula de religião; não o fez porque, como ele mesmo me disse, queria que eu forjasse minha crença ou descrença escutando algo diferente do que ele pensava.

O único professor que suspeitávamos que fosse de esquerda era Raimondi, que ensinava história da filosofia.

Raimondi não ensinava nem Marx nem Lênin nem Mao.

No primeiro ano, o programa era dos pré-socráticos até à filosofia romana.

A famosa frase da "Apologia de Sócrates", segundo a qual a vida que não pensa sobre si mesma não vale a pena ser vivida, serviu para introduzir uma reflexão coletiva, que durou semanas: éramos estranhos para nós mesmos? O que entendo, anos depois, sobre alienação ainda vem do debate daquelas aulas de 55 anos atrás.

De fato, era irrelevante que Raimondi fosse marxista ou não, porque as ideias com as quais ele nos convidava a pensar não eram chicletes usados.

Os estudantes da Móbile poderiam se manifestar contra qualquer ensino que cospe opiniões como se fossem verdades —na escola ou em casa, de esquerda ou de direita, tanto faz.

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